Textos de colaboradores

V de Verdade

Acabo de desligar a TV: o jornal disparou fulminante sobre os ataques criminosos em São Paulo: ônibus queimados, delegacias, bancos, supermercados e outras lojas depredados e alvejados… Carcereiros, policiais e correlatos aos criminosos – se é que há como diferenciar estes dois últimos – são vítimas de atentados. Homens de terno e gravata (invariavelmente secretários de justiça, delegados, políticos, terror-jornalistas e líderes religiosos) vão à televisão afirmando não temerem as ações dos criminosos, estarem prontos a responder tais ações e que “esta violência terá um fim com a prisão dos responsáveis”. O dejà vu é inevitável, mesmo todos nós sabendo que não é este o caso…

“V”

Para aqueles que não conhecem a série (origem do filme) “V de Vingança”, o comentário pode parecer descabido, mas… “V” é um personagem enlouquecido pelas injustiças que sofreu no passado em um campo de concentração inglês, criado num pós guerra nuclear. As mesmas atrocidades que criaram o vulcão de revolta em sua alma transformaram-no em um ser ímpar na sua irracionalidade, poesia e engenhosidade. “V” conversa em rimas, transforma quase todos as suas falas em poemas quando não se apropria de versos alheios para os seus discursos. Munido das armas que o criaram, ele cobra, agora, com sangue a dívida de seus algozes, numa série de atentados que formam um intrincado esquema rico em poesia e destruição. “V” é um terrorista.

O escritor Alan Moore criou “V” na década de 80, não sendo ele uma apologia ao super-terrorismo de hoje e não é esse o nosso foco aqui. Queremos falar (e já o fizemos) do nosso terror diário. Os mesmos homens de terno e gravata que vão à TV são os inimigos de “V” na série… Como resposta ao seu enganoso discurso o sorriso silencioso da máscara de “V” é uma daquelas imagens que prescindem de palavras… Mas nosso anti-herói gosta das palavras e de falar: em monólogo travado com a estátua da Justiça ele confessa amá-la desde a mais tenra idade e que ela o traiu por um “homem de uniforme” a quem passou a pertencer. Em virtude desta traição, “V” foi obrigado a abandoná-la por uma nova amante que “não faz promessas e não as quebra…”. Ela ensinou-lhe que justiça sem liberdade não tem nenhum significado… Seu nome é Anarquia.
A nova paixão de “V”, embora inconcebível pra nós, tomou fôlego nas últimas décadas. Como e por quê, eu me perguntava há pouco, frente as imagens, como pode alguém se sentir livre o suficiente para atacar bens e edifícios públicos ameaçando a vida alheia – ações também perpetratdas por “V”? E como são numerosos… “Ora, Arthur, Vi veri veniversum vivus vici*!!,”, diria o personagem. “Eu sou um sentimento nessas pessoas, um espírito nelas; ao sufocar o grito delas você estará apenas me dando mais forças já que foi daí que surgí, daí mesmo vieram as minhas armas. Das favelas, do desemprego, da falsa e hipócrita democracia, da indiferença, disso que chamam de polícia a quem me aliei, da frustração de desejos diária e compulsiva e da dor que embebe tudo isso. Foram esses o meu campo de concentração, a minha ditatura (não) declarada, o meu exército nas ruas, meus laboratórios de experimentos bio-genéticos a cèu aberto… E sou eu agora um paradoxo por que minha fome cresce quando você me alimenta e quando me ignora sou eu quem creço… Livre….”.

No clímax que conclui o filme, uma multidão de “V”´s toma praça pública – na série isso não ocorre; o personagem é, originalmente, “cult” e sombrio demais para uma manifestação tão popular e hollywoodiana… – e subjulga, sem maior esforço, a polícia militar para assistir a destruição das casas do Parlamento inglês. Aqui a imagem é mais apropriada à nossa realidade, ao nosso V de verdade, quando pessoas sem rosto, sem uniforme, imbuídas de um espírito de vingança – no plano racional controlado, ora pela criminalidade ora por oportunista, como na invasão à Câmara dos Deputados em Brasília – avançam e agem em retaliação às grossas camasdas de injustiça social acumuladas década sobre década, homem sobre homem, espírito sobre espírito.A diferença absoluta e inescapável, para além da forma, é que o nosso filme não tem fim.
*Traduzido do latim: “Pelo poder da verdade eu, enquanto vivo, conquistei o universo… ” citação – retirada da série – do protagonista da tragédia Fausto escrita por Goethe, baseada na figura lendária do mágico e alquimista Johan Faust (aproximadamente, 1480-1540) que teria feito um pacto com o diabo.

 Arthur Toledo

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