Textos de colaboradores

À italiana

Confesso que sinto certo desapontamento quando me olho no espelho. Meu rosto, ou o que restou dele, está lotado de hematomas, além de contar com um dos supercílios rasgado e o olho direito parecendo uma bola de sinuca. Não dá para acostumar com a dor, de jeito algum. Pego alguns analgésicos no armário do banheiro e trato de enfiar três goela abaixo. Um deles fica agarrado no esôfago. Nada que um copaço de água não resolva.

Tento recordar onde diabos me meti para sair tão quebrado. Zero. Nenhum resultado. Passo para o próximo método. Uma sequência de tapas na nuca resolve o problema da amnésia. Bem, comigo sempre deu certo. E dá.

Lembro-me de um bar. A casa cheia. Algumas mulheres seminuas fazendo pole dance. Uma delas desliza o corpo pela barra de um jeito que minha vó reprovaria. Menina malcriada, diria. Ao meu lado, confortavelmente sentado à mesa, meu melhor amigo enche a cara de Martini. Sua jaqueta de couro lembra muito uma cascavel trocando de pele. Ele não parece interessado na garota do palco.

Na cadeira da frente, um cara com fisionomia de cachorro bravo, retira um pequeno embrulho do paletó.  O homem fala algo, mesmo com a voz grave é difícil distinguir qualquer palavra. A música está no último talo. Ele repete num tom meio irritado:

– Trouxe o material pra vocês. Nem sonhem abrir o bico em como conseguiram isso. Vocês nunca me viram.   Estamos entendidos? – Meneio a cabeça afirmando que sim, ainda entreolhando a bela moça do pole dance. Meu amigo faz o mesmo.

Tudo transcorre da melhor forma possível até a hora do cachorro-bravo perguntar sobre o dinheiro. Olho para meu amigo, depois para a garota do pole, e de novo para meu amigo. Por alguns instantes sinto meu estômago revirar. Engulo seco antes de ir para o finalmente: – Na verdade… bem no fundo –falo enquanto aproximo a mão da garrafa de Jack Daniel’s – não existe dinheiro algum. A tempo de evitar um grande desastre meto o Jack Daniel’s  na cabeça do homem. Ledo engano.

Instintivamente o cachorro-bravo, agora furioso da vida, chacoalha a cabeça tentando recobrar os sentidos. O sangue escorre. Ainda atordoado e confuso por causa do golpe, ele retira uma semiautomática cor prata, novinha em folha, sob o paletó. Borro de medo quando vejo aquele troço sendo apontado na minha direção. Meu amigo – pelo menos assim o considerava alguns segundos atrás – está fora do meu campo de visão. O filho da mãe deu no pé.

Não vejo mais a linda garota do pole dance. Nem sinal dela. Na sua situação eu também teria feito o mesmo. Fugido. Correria feito um louco. É o que faço.

De soslaio vejo o homem em pé. O cachorro-bravo segura firme a pistola. Eu não quero ver para crer. Ouso o primeiro disparo. Sabendo que demora algum tempo para sentir dor num momento de adrenalina, apalpo o corpo para me certificar de nenhum buraco ou sangue jorrando.  Aprendi isso nesses programas de criminalística. Já vi casos da pessoa achar que estava com enxaqueca, quando na verdade era uma bala alojada no crânio.

A música diminui. Acho que diminui. Ouço outro disparo.

Abraço o embrulho como uma garotinha abraça seu ursinho de pelúcia, com medo.  O cara grita enlouquecido “Seu idiota! Você vai se dar mal por isso!”. Ouço um novo disparo. O tiro segue seu rumo.  Passo a mão pelo corpo. Nenhum buraco. Que alívio.

Esforço-me para alcançar a saída do bar.

Olho para trás. O cara desaparece no meio da confusão de gente.

Volto a olhar na direção da saída. Aqui está o cachorro-bravo na minha frente, uma barreira humana. Travo completamente diante dele.  Não dá tempo de explicar meus motivos para o homem, não antes de levar uma bela coronhada na cabeça. E outra. E mais outra. Até desmaiar.

Num passe de mágica acordo em meu apartamento. A cabeça dói, o rosto dói. Não faço ideia de como cheguei. Procuro pelo embrulho. Está sobre a pia do banheiro. Sinto dor abaixo da virilha. Pego o pacote. Olho para o estrago no meu rosto.  Olho para pacote admirando-o por um breve momento, feliz pelo meu sucesso, a despeito da surra, das dores e dos hematomas. Tomo alguns analgésicos. Desfaço o embrulho. Trata-se de uma bela caixa italiana. Forço a tampa contra mim. Ela abre num estalo elegante. Ufa, até que enfim. Minha alegria termina tão rápido quanto começa. O que vejo em seguida me causa náusea além de enorme desespero: meus testículos estão enrolados num papel de seda.

 

Juan Candido

 

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