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Raspa de gelo

Juan Candido

Como penúltimo pedido, a irmã mais velha queria seu vestido usado que comprara em sua viagem à Itália, e que havia pertencido a uma tal debutante, a qual, em circunstâncias estranhas, desaparecera sem deixar pistas no dia da festa, exceto pelo vestido e pela rosa artificial presa a ele. Isso um ano antes de a irmã mais velha descobrir o câncer no útero,  e antes de ele avançar para todos os seus órgãos numa mini-expansão intercontinental romana.

O último pedido era um singelo copo repleto de raspa de gelo acumulado no refrigerador.

O vestido estava dentro de uma caixa no fundo do guarda-roupa, “se não falhasse a memória”, talvez “atrás da terceira porta”,  da quarta porta. Fez um quatro com os dedos esquálidos para certificar que a irmã mais nova entendera os detalhes do penúltimo pedido. Mas antes de repetir o último, a irmã já tinha dado as costas e saído da enfermaria.

O copo repleto de raspadinha de gelo parecia um pedido provinciano por demais perto do que a irmã mais nova percorreria para realizar o penúltimo desejo. E tinha outra escolha?

Cinquenta e dois quilômetros e meio depois abria a terceira porta do guarda-roupa. Quarta porta, lembrou-se. Encontrou a caixa no fundo como predicado pela irmã. Depois disso, estava de novo a caminho do hospital.

Agora faltava o último desejo.

Não tinha pressa. Providenciaria assim que botasse os pés no hospital. Uma das enfermeiras iria ajudar. Daria certo.

Buscou ajuda na primeira enfermeira que avistou no corredor. Leu Tuane no crachá. Contou-lhe sobre o último pedido da irmã. A enfermeira, ainda que solícita e sentindo muito mas muito mesmo, a ponto de segurar sua mão – a que estava livre da caixa, informou que dentro do hospital seria impossível atender ao pedido. Os freezers eram frost free.

Quando se deu conta, estava numa lanchonete em frente ao hospital. Explicou a história para o balconista, que de pronto entregou um copo descartável cheio de raspa de gelo.

De volta ao hospital, entrou na enfermaria, deparando com a cama vazia da irmã. Um enfermeiro recolhia os últimos pertences da paciente.

“Pra’onde ela foi?”

“Você…?”

“Sou irmã dela.”

O enfermeiro terminou de recolher os pertences sem dar satisfação. Depois saiu. Nem mais uma palavra de ambos.

Ela o seguia. Contudo uma enfermeira alta e de olhos penetrantes postou-se em sua frente.

“Você é a irmã da Luciene Sarmento?”

“Sim.” Viu o enfermeiro de segundos atrás passando com as coisas da irmã mais velha. Ao perceber que estava sendo seguido pelo olhar inquisitivo da moça, o rapaz abaixou a cabeça, depois entrou num tipo de guarda-volumes. Bateu a porta.

“O dr. Carlos quer falar com você.”, disse o grande bloco de mármore acinzentado.

“Ela foi transferida?”, fitava a porta do guarda-alguma-coisa.

“Não.”

O médico explicou.

Luciene tivera uma parada cardiorrespiratória. Mas a irmã não quis ouvir o resto. Saiu do consultório ainda segurando copo e vestido, os dentes cerrados assinalando a culpa e a frustração.

Chorou.

Por fim, encontrou uma fileira de bancos vazios e se sentou. Olhou para o copo. Um pequeno lago gelado havia se formado dentro dele. Levantou-o num brinde póstumo à irmã. “Te devo uma raspadinha de gelo.” Em seguida abriu a caixa. O vestido ainda estava em perfeito estado. Mas não tinha mais a rosa.

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