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Hibernação

Não faço a mínima ideia de quanto tempo estive apagada. Se foram horas ou minutos, sinceramente desconheço. A sensação é de dias. Totalmente desligada. Hibernando. Sei lá. Pouco importa agora. A única certeza – e, por favor, seja razoável comigo antes de pedir para calar minha boca e não reclamar da vida – é que não sinto meu corpo, nem um fio de cabelo sequer. Cabeça, braços, pernas… tudo está completamente imóvel.

Meu consolo é o fato de estar em casa olhando para o teto recém-pintado. Sem mencionar o lustre, os pontinhos pretos impregnados nele, a luz entrando pela minha retina. O melhor entretenimento possível.  Nunca tinha me dado conta de quanto é bom ficar sem fazer nada.

Alguma coisa muito desagradável interrompe meu ócio. O rosto de um garoto branco feito assombração aparece na minha frente. Ele é feio pra burro. Percebo um tom de preocupação na sua voz ao dar a péssima notícia:

– Cara, acho que ela apagou de vez.  Eu disse pra não enchê-la dessa merda de uísque.

– A culpa é minha agora… Ah tá. – o amigo fala com condescendência. – Foram os remédios da sua mãe que fizeram isso. Onde já se viu misturar Dorflex, Rivotril e clomipramina?  Se ela está pra-lá-de-bagdá a culpa é todinha sua, mané!

O branquelo respira fundo antes de retrucar: – Mané, eu?! Vá se ferrar! Você sabe que ela não podia com bebida e mesmo assim deu. Não foram os remédios.

Ei, gente. Não gostaria de interromper a discussão das donzelas, mas para refrescar a memória de vocês: a vítima aqui sou eu! Euzinha!

– Cala essa sua boca! – o inteligente-do-uísque grita para o amigo sentido-se injustiçado. Continua:

– Olha só, Victor, é melhor a gente parar de ficar jogando a culpa um no outro e tratar de resolver o problema. Seu pai chega daqui a pouco, e vai nos trucidar se ver Bete desse jeito.  Até que enfim alguém raciocinando nesse lugar, penso comigo.

Vitor aproxima seu rosto na minha direção. A visão fica meio fora de foco. Ele estica minha pálpebra até meu olho ficar completamente arregalado. Para completar bafora o forte hálito de Halls direto no meu nariz.

– Olha como a pupila dela está dilatada. Isso não me cheira nada bem.

Do-uísque dá um chega pra lá em Vitor.

– Deixa eu ver… Putz! – os olhos verdes fixos em mim. – Será que ela está consciente?

Sim. Estou sim, porra! Ah, para vai… Desde quando você é telepata. Eles não te escutarão nunca.  E realmente não escutam. O inteligente tenta chegar a uma conclusão:

– Velho, se eu estiver correto o cérebro dela pifou. Seu pai vai nos esganar.

– Isso quer dizer…

– Que ela foi pro beleléu. – do-uísque completa a frase. – Ferramos tudo.

Vitor mostra o celular num sinal de humildade.

– Ron, talvez ainda dá tempo de consertar. Vou ligar para o Jone, ele é amigo do meu pai, com certeza vai saber o que fazer.

Ele busca diligentemente o contato. Antes mesmo de concluir a tarefa, Ron toma o celular e joga sobre o outro sofá. Consigo ouvir o impacto do pequeno aparelho ao aterrissar. Ron não acredita na ingenuidade do amigo, esbraveja:

– Tá maluco?! Endoidou?! Na primeira oportunidade Jone liga para seu pai e nos deleta. Ou se esqueceu da última vez que queimamos a TV e ele rapidinho deu um jeito de contar para seu pai?  Jone é um dedo-duro. Não podemos confiar nele. Isso deve ficar entre a gente. Só a gente.

– Então o que fazemos? – o tiro sai pela culatra.

– Fácil. Enquanto penso numa solução você fica de bico fechado. Simples.

Vejo o tempo passar lentamente. Não aguento mais olhar para o teto. Se pudesse fecharia os olhos agora, mas não posso, estou cem por cento travada. Maldito dia que resolvi dar ouvidos a adolescentes. Bem feito. Pelo menos, assim, aprendo a não fazer tudo o que me obrigam. Outra coisa: adolescentes mais pais desleixados  e menos responsabilidade é igual a merda feita. Não dá noutra. Sempre foi desse jeito. O mundo acabará por causa de algum adolescente imbecil.

Ouço a falácia dos dois garotos num ponto da sala. Tudo indica que finalmente encontraram a solução para meu estado vegetativo. Finalmente poderei me levantar daqui e dar uma espreguiçada, ou até mesmo sair por aí por simples diversão. Nem sempre a vida é tão generosa. É raro uma segunda chance. Percebo certa agitação no que vem em seguida.

–Segure isso pra mim, Vi.

Fico curiosa em saber qual é o plano. Não consigo ver nada além do teto. Eles colocam um troço sobre mim. Vai ver pensaram em algo realmente inteligente. Espero que sim. Talvez resolveram botar um sonzinho pra tocar. Aliviar a tensão. Uma musicoterapia. Vi algo do tipo. Pessoas sendo curadas pela música. Maravilha.

– Agora, Vi, liga isso na tomada.

Espero a música começar. Bulhufas. Nada de começar. Reparo certa insegurança no timbre da voz de Ron:

– Tem que dar certo. –  faz um gesto com a mão. – No três. Um… dois….

No três meu tórax infla, e uma forte corrente elétrica me percorre por todo o corpo. A vontade de matá-los chega a ser incontrolável. Pena que estou completamente imóvel. Os retardados, filhos sem pai e mãe, animais irracionais, estão usando um maldito desfibrilador. Um maldito desfibrilador. Eles querem me matar.

– De novo… um… dois… TRÊS! – grita Ron.

Dessa vez Vitor não obedece.

– Vamos, cara. Não seja uma mulherzinha. Aperta o botão.

– Não. Não vou. Cansei de você ficar mandando em mim. Só meus pais mandam em mim. E mais outra coisinha. Esse seu plano é idiota. Não vai dar certo.

O amigo manda-o calar a boca. Vitor continua:

– Pensa bem. Se ela estiver só apagada, esse troço vai torrar o cérebro dela. Daí perdemos a garantia.

Eu concordo.

– Então qual é o seu plano, Mané? Ligar para o Jone e nos ferrar? Sair chorando feito bichinha, deve ser – posso imaginar o ar de prepotente de Ron. Da dupla ele sempre se achou o esperto. Agora está tento seu troco. Dois a um para Vitor.

–  Tá certo… o plano é o seguinte, Ron…

A sala fica em completo silêncio. Por breve momento não ouço um ruído sequer. Fazia parte do plano irem até o quarto de… não entendi de quem. Devia ser do pai. Disseram que seria para buscar um livro. Espero não se tratar de nenhuma bizarrice. Só falta eles tentarem me bater com o livro. Depois do desfibrilador acredito em qualquer coisa, até em livroterapia.

Um passo atrás do outro, eles voltam para a sala, felizes com a descoberta. Ron rincha para o amigo algo do qual fico a anos-luz de interpretar.

Num passe de mágica minha visão se ajusta ao ambiente. É como se agora eu tivesse me transformado numa Canon Power Shot e passado para a função panorâmica. De onde estou consigo enxergar as duas pestes com o livro na mão. Ron volta-se para mim. Na sua cabeça continuo do mesmo jeito.

–E aí, Vi, o manual fala o quê?

Apontando o dedo para uma das linhas da página, Vitor responde:

– Pelo visto basta reiniciá-la.

– Mas como assim? – Ron exclama.

– Ora, apertando este botão…

Vitor aperta meu pescoço com o indicador. A sensação de estar flutuando me faz sentir bem. Não entendo o porquê, apenas espero e relaxo. De repente um monte de memórias vão surgindo na minha mente. Lembro de Vitor pequeno, seu pai carregando-o nos ombros, logo atrás, eu segurando uma cesta, num vestido bege. Assentamos no gramado macio da campina. Na sequência, num salto, passo para outra lembrança. Estou na porta da sala. Vitor e Ron me puxam para dentro com toda força. Agora, no sofá, recebo uma taça, o líquido borbulha. Ouço Ron dizer que está tudo bem, que posso tomar. Olho para Vitor. Ele balança a cabeça em desaprovação. Bebo até não restar uma gota do líquido estranho. Os dois brigam. Fico zonza. Deito. Depois apago.

As lembranças desaparecem. Reparo o teto, o lustre, os minúsculos pontinhos pretos nele. Vitor me olha. O ambiente em minha volta começa a ficar disforme. A sala fica maior do que o normal. Tudo parece distante. No fundo do ouvido uma voz metálica me alerta: Reiniciando em… cinco… quatro… três… dois… um…  E é aqui, entre um milésimo de segundo e outro, que me despeço do rosto esbranquiçado de Vitor.

Juan Candido

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