(des)levezas

Age, um Estado criminoso, em nome da Justiça?

Age, um Estado criminoso, em nome da Justiça?[1]

Nunca é demais lembrar que um Estado de Direito se caracteriza pela autoimposição de limites racionais ao exercício do poder, tratando-se, assim, daquele que institui a lei para impedir que soberania se perverta em absolutismo, que o sujeito seja assujeitado pelo Estado. O Estado de Direito, portanto, é a barreira instituída de modo a permitir que exista o sujeito, na medida em que impede sua reificação e massacre pelo próprio Estado. Não à toa, surgiu em superação ao absolutismo, ao poder estatal absoluto em face dos indivíduos.

Mas o poder não costuma ser dócil e, como sempre alertou Zaffaroni, à menor brecha, tende a desbordar os limites que lhe são impostos, convertendo força em violência, punição em crime. E é por essas dinâmicas que a barbárie ameaça a civilização, apropriando-se do desejo mórbido de vingança e/ou de impulsos sádicos ainda capazes de reunir um sem-número de pessoas em torno de cruzes, fogueiras, forcas ou prisões.

Para um Estado que se pretenda de Direito, portanto, não há opção, a não ser cumprir a lei. Não há fim que justifique os meios ou, dito de outro modo, em um Estado de Direito, é o respeito aos meios que resguarda os fins. Assim, se considerados os pressupostos de um Estado de Direito, é o Estado, titular do poder máximo, que se perverte em criminoso quando viola as leis que se autoimpõe, aniquilando as liberdades do sujeito cuja proteção é justamente a fonte de legitimidade de seu poder.

Repita-se, porque nunca será demais o destaque: não há opção. Em um Estado de Direito, diante do poder punitivo, a liberdade é indisponível, não havendo flexibilização possível quando se visa sua restrição – especialmente em caráter cautelar. Nesse marco, não há lugar para interpretações extensivas ou qualquer tipo de contorcionismo hermenêutico que pretenda se apoiar em clamores públicos para legitimar prisões, conduções coercitivas ou quaisquer procedimentos processuais abusivos – criminosos. Em síntese, um Estado de Direito não se legitima pela irracionalidade de clamores públicos mais ou menos induzidos ou produzidos pela grande mídia e os interesses que a sustentam, mas pela observância consciente da racionalidade da lei.

E se assim é um Estado de Direito, temos como criminoso o Estado que age em franca violação às garantias individuais fundamentais erguidas em limitação a seu poder, não havendo alquimia midiática capaz de purificar as exceções que se abrem dando vazão às pulsões mortíferas pelas quais assistimos à emersão de um Estado de polícia no Brasil.

Um Estado homicida, quando por uma prisão descabida e espetacularizada induz ao suicídio pessoa pública de conduta sem manchas – como foi o caso de Luiz Carlos Cancellier. Um Estado sequestrador, torturador e extorsionário, na medida em que priva pessoas sem antecedentes penais de sua liberdade, visando delas extrair à força delações, confissões ou quaisquer vantagens indevidas, ao arrepio da lei, mas sob aplausos efusivos daqueles que, emulados pelos meios de comunicação, dão vazão a seus impulsos sádicos diante das cruzes, fogueiras e forcas pós-modernas. Em síntese, um Estado duas vezes criminoso, na medida em que, por seus agentes, viola os direitos e garantias fundamentais que deveria resguardar.

Nada aprendemos com a história e, mais uma vez, assistimos à reunião de múltiplas ignorâncias satisfeitas de si – a cegueira deliberada, a canalhice aperfeiçoada, a estupidez realizada! –, fruindo de um gozo escópico maldito a partir da ruína moral de acadêmicos respeitados e levados ao suicídio pela desonra; da seletividade de elaboração, interpretação e aplicação da lei penal; da prisão de idosos de saúde debilitada e de senhoras de trajetória pessoal livre de máculas, sequestradas de seu domicílio, arrancadas do convívio familiar e remetidas para cárceres longínquos ao arrepio de toda a legislação aplicável à questão. Um gozo escópico seguido de aplausos que enchem de glória e orgulho heróis fátuos, debruçados à beira do lago e tão encantados com a própria imagem que são incapazes de perceber que a coruja de Minerva já os enxerga ao longe na história, distantes de Têmis e próximos de Hades. E já não há Moralismos, vestes negras ou pós-verdades que possam salvá-los… A coruja de Minerva enxerga no escuro.

Golpistas, não passarão. Culpa e vergonha lhes reserva a história.


[1] Texto escrito no primeiro semestre de 2018

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