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A tornozeleira astrológica – Parte II: poderia Lula seguir o exemplo de Sócrates?

A tornozeleira astrológica – Parte II: poderia Lula seguir o exemplo de Sócrates?

Dando sequência ao texto anterior[1], em que comparamos a situação de Lula à de Sócrates, o ex-primeiro-ministro português, avançamos no detalhamento da tese jurídica, tendo em conta a controvérsia estabelecida no meio jurídico nacional a respeito do tema e algumas ponderações que recebemos em relação ao texto trazido a público. Ou seja, atribuiremos maior relevo aos fundamentos jurídico-legais do entendimento expressado, no sentido da possibilidade de recusa da progressão de regime por parte de Lula, ou outra pessoa que na mesma situação se encontre, a depender das condições que lhe sejam impostas – como, por exemplo, o uso de tornozeleira eletrônica.

Para tanto, importante ressaltar que a recusa possível à progressão de regime volta-se às condições que extrapolem o legalmente previsto e que lhe sejam impostas para acesso ao semiaberto. Assim sendo, não se trata de uma recusa à progressão em si ou ao acesso à liberdade, mas, sim, de uma recusa à progressão sob condições não previstas em lei e que, no caso concreto, podem ser até vexatórias e portar grande peso simbólico. Afinal, vale lembrar, vigora em nosso país – especialmente diante do poder punitivo estatal – garantia segundo a qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” – CF, art. 5º, II.

Justamente por isso, defendemos que, à falta de regramento específico, é de se aplicar ao caso o disposto no art. 113 da LEP, do qual se extrai que a progressão ao regime aberto “(…) supõe a aceitação do programa e das condições impostas pelo juiz”. Isso, convém lembrar, não diz de uma disponibilidade do direito à liberdade frente ao poder punitivo estatal, mas, pelo contrário, do exercício de liberdade individual – uma afirmação de liberdade, resistência amparada pela lei frente a limitações que ela não prevê, uma posição e, não, disposição de liberdade! – assegurado ao sujeito diante do poder estatal e de seus possíveis excessos, os quais podem se traduzir, por exemplo, pela imposição de condições abusivas e, inclusive, violadoras da própria liberdade ou de outros direitos fundamentais do segregado.

Ora, bem sabemos que a progressão ao semiaberto não depende do uso de tornozeleira eletrônica, estando o acesso a este regime vinculado muito mais ao desempenho de trabalho ou outra atividade que represente a reinserção social do apenado – o que, segundo a lei, inclusive deveria se dar em estabelecimentos prisionais especiais (as tais colônias agrícolas ou industriais). E vale frisar, fossem condições impostas pela lei como requisitos e em decorrência da progressão, entendemos que não haveria recusa possível – lembremos o art. 5º, II, da CF, acima transcrito. Mas não será esse o caso na hipótese de serem impostas a Lula condições não previstas em lei, máxime se, por qualquer razão, tiverem caráter vexatório – e, no contexto, o aviltamento trazido por supostas condições é uma probabilidade, considerando o uso pirotécnico e simbólico dos instrumentos penais e processuais penais que se faz até aqui na “Operação Vaza Jato”, ou melhor, “Lava Jato”.

Certo é que, como dissemos no que podemos chamar de Parte I deste texto, o passar dos dias e o desvelar de fatos que faltaram às muitas convicções que atingem em especial (mas não apenas) o ex-chefe de Estado e agora vêm à tona deixam claro que o direito é o que menos importa nos casos vinculados à operação que “mudou o Brasil”, colocando-nos em “outro patamar civilizatório”. No contexto distópico a que assistimos, a astrologia superando o direito e dominando a política, não surpreenderá se razões de ordem pública ou outras válvulas de escape jurídicas sejam invocadas para forçar a liberdade do ex-presidente Lula sob quaisquer condições. E se trata justamente disso: forçar a liberdade de alguém que está cumprindo pena sem ter sido definitivamente condenado, nem estando presente hipótese constitucional de medida cautelar, a partir de acusações que os fatos emergentes revelam forçadas e de um processo crivado de ilegalidades e vícios inclusive já reconhecidos – mas somente para outros, ainda que nas mesmas condições.

Se há algo positivo nisso tudo, talvez se expresse pelo desvelamento da face do estado de exceção criado sob medida para certo campo político brasileiro, que mostra os dentes e os olhos a comunicarem o autoritarismo despudorado que grassa pelo país. De tanto forçar, a violência estatal e o caráter político do massacre oficial a Lula se escancaram até nos pedidos de liberdade contra si formulados pelo Estado-acusação. Porque, no caso, com condições que extrapolem a lei, por mais paradoxal que pareça, é justamente do que se trata: um pedido de liberdade contra alguém que, ordinariamente, sequer deveria estar segregado – ao menos dentro do quadro processual até o momento explicitado –, o qual pode até livrá-lo das grades, mas que, por outro lado, impõe-lhe mais um sequestro simbólico, mais um esforço de achaque de um projeto que, cada vez mais, apequena-se diante de seu principal alvo.

Então, mais uma vez, frisamos que, a nosso sentir, Lula não está vinculado a uma liberdade que lhe imponha o uso de tornozeleiras, chapéus, mordaças ou quaisquer outros acessórios e condições estigmatizantes não previstas em lei para a hipótese (progressão de regime). Noutras palavras, ele não tem que se submeter a um aprisionamento simbólico que se lhe apresenta como uma liberdade forçada, a partir da qual o Estado procura travestir de legalidade e isenção atos de pura parcialidade e abuso – mais uma vez, porque desbordam a lei. Aliás, dentre tantas outras perversões, caso se condicione indevidamente sua liberdade, com imposições ilegais e de manifesta finalidade infamante, o que teremos é precisamente a perversão da própria liberdade e dos direitos que a resguardam.

Assim nos parece. Entretanto, ressaltamos que se trata de um esforço de reflexão jurídica, que pode de nada valer diante da astrologia e de tantos outros ocultismos impostos com força de pena e estigma a Lula.

Domingos Barroso da Costa

Defensor Público no RS. Mestre em Psicologia pela PUC-MG.

Arion Escorsin de Godoy

Defensor Público no RS. Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Pelotas com estágio doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.


[1]              Disponível em http://www.justificando.com/2019/09/30/a-tornozeleira-astrologica/

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