(des)levezas

De bombeiros piromaníacos e a exploração midiática da violência

De bombeiros piromaníacos e a exploração midiática da violência[1]

Segunda-feira, 25 de setembro de 2017, TV ligada em canal aberto, apenas para que algum barulho embalasse a espera pelo almoço. De repente, uma notícia ilustrada por imagens de uma câmera de segurança chama a atenção: na tela, um homem bolina uma criança dentro de um supermercado. Com a aplicação de recursos visuais, apenas a imagem do rosto do sujeito captado no ato do abuso permanece passível de identificação precisa, enquanto as outras imagens são distorcidas. Entretanto, apesar das distorções, a cena captada é clara e angustiante: um homem atrai uma criança e a bolina em um lugar com grande movimentação de pessoas.

As imagens chocam tanto que convidam à reflexão quanto à necessidade ou utilidade de sua exibição em TV aberta, por volta do meio-dia. Com a certeza de que em hipótese alguma eram necessárias ou úteis à comunicação – pública – do fato exposto, resta a conclusão de que só foram exibidas pelo espetáculo que proporcionam a telespectadores que, de alguma forma, gozam com uma violência tão banalizada.

Em síntese, a cena transmitida era uma violência em si mesma, uma metaviolência, na medida em que representava um mais ainda de violência, que transcendia aquela captada em tempo real pelas câmeras de vigilância de um supermercado e era disponibilizada irrestritamente ao público do meio-dia. Uma violência contra a audiência, praticada enquanto o apresentador do telejornal se esforçava para desenvolver um discurso moralizante, valendo-se de uma sucessão de clichês por meio dos quais tentava justificar a violência imposta aos telespectadores – e também contra a menina e contra o próprio indivíduo apontado como abusador, que, vale lembrar, ainda deve ser submetido a um devido processo legal. E a violência multiplicava-se, veiculada por outras imagens de roubos, colisões de veículo e outras violências que se sucediam, sempre tendo por trilha sonora a tagarelice costumeira, permeada por clamores pelo combate mais severo à criminalidade, por um Estado de leis e ações mais rigorosas contra “bandidos”[2] etc.

Todavia, é de se reconhecer que, em termos gerais, não há maiores novidades no cenário exposto, considerando o que se faz em TV aberta, especialmente desde a década de 90 do século passado. E esse é o problema. A violência que estabelece a pauta jornalística, e mesmo dos programas de variedades, chegou a um grau de banalização tal que são necessárias imagens de um provável abuso sexual praticado contra criança para que despertemos de nosso torpor e voltemos a criticar a falta de limites e os abusos das empresas de comunicação, considerando que estão submetidas ao interesse público, como se infere dos arts. 220 a 224 da Constituição Federal.

Esse é o ponto: o interesse público ou, mais precisamente, aquilo que diz respeito a todos e a cada um[3] e que, por assim ser, deve vir à luz pública, sendo comunicado a toda comunidade, em canais abertos. Emerge, então, o questionamento: onde está o interesse público na divulgação de imagens de violência sexual contra criança captadas em tempo real? Ou, reformulando a questão a partir do disposto no art. 221 da CF, que baliza – ou deveria balizar – a produção e programação das emissoras de rádio e televisão: em que as imagens de violência captadas em tempo real atendem a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas? Em que medida promovem a cultura e respeitam valores éticos e sociais “da pessoa e da família”?

Sem qualquer chance de equívoco, tem-se a certeza de que as imagens em questão não observam qualquer finalidade educativa, artística, cultural ou informativa, muito menos se detêm ante limites éticos ou até mesmo estéticos – a não ser que se admita que a ética que doravante há de ser observada é “sadeana”, uma “contraética” portanto, o que não seria de todo surpreendente, diga-se. Pelo contrário, as imagens de violência captadas em tempo real e exibidas à exaustão pelas TVs abertas obedecem a um só mestre, que atende pelo nome de mercado e se move por interesses privados, os quais há muito estão voltados aos lucros que se podem extrair da exploração do gozo escópico de cada um dos milhões de telespectadores, de fluxo liberado pela lógica de funcionamento de nossa sociedade de consumo.

As imagens em questão, portanto, nada acrescentam à informação sobre o fato jornalístico, de modo que sua exibição está relacionada exclusivamente à corrida pela audiência, que tudo justifica, inclusive a imposição de violência ao telespectador – não se podendo esquecer que se diz de um horário que abarca audiência de todas as idades. Noutros termos, sob o falso argumento – explícito ou implícito – de que denunciam a violência, as TVs abertas não hesitam em violentar indiscriminadamente seus telespectadores, estabelecendo um circuito perverso em que se democratiza não a informação, mas a violência. No verso – perverso – da informação, difunde-se a cultura do medo e expande-se a violência que, de forma progressiva e difusa, passa a ser a tônica das relações e o combustível da paranoia que contemporaneamente nos toma a todos, fazendo-nos servis ao pânico que nos retira das ruas, corrói nossos relacionamentos e negócios quotidianos.

Tem-se, então, desnudada a lógica do bombeiro piromaníaco, que mais justifica sua atividade de combate a incêndios quanto mais os provoca. Ou, valendo-nos de uma metáfora frequente nas obras de Dany-Robert Dufour, percebem-se, nas dinâmicas descritas, as tramas de uma armadilha, em que aquele que pensa ter capturado a isca termina por ela capturado em uma armadilha maior[4]. Nessas circunstâncias, a audiência é surpreendida tal qual a criança que, enquanto pensa capturar a imagem proibida a que assiste pelo buraco da fechadura, está, na verdade, presa a ela, por ela capturado. Em última análise, pensando exercer algum controle ativo sobre a violência a que assistem compulsivamente, os telespectadores terminam por ela subjugados, na medida em que a violência transmitida pelas imagens passam a dominar toda sua vida quotidiana.

Passando, assim, dos interesses privados das empresas de TV[5] aos interesses profundamente privados da audiência – afinal, não fosse uma audiência crescente e cativa, não haveria interesse na propalação das (obs)cenas em questão –, convém trazer ao debate o fato de que a espetacularização da violência toca as cordas dos sentimentos mais subterrâneos do telespectador, que, embora se afirme indignado com a violência e o estado de coisas em que ela se insere, não se cansa de ver e rever, na TV ou nas redes sociais, as imagens pelas quais essa violência se exibe, sob suas mais diversas formas (polimorfa). E se vê e revê tais imagens, há de se concluir que algum prazer extrai desse comportamento, ainda que seja aquele decorrente da satisfação de uma compulsão, constatação que é suficiente para trazer à tona a necessidade de se refletir sobre o papel do sujeito que goza[6] assistindo à violência na propagação da própria violência; constatação que também expõe toda a contradição da postura daquele que critica a violência mas lhe garante toda a audiência possível, seja quando exibida na TV, seja quando difundida nas redes sociais, no rádio ou mesmo na mídia impressa.

Até que tais dinâmicas emerjam à consciência e produzam efeitos sociais e políticos ao ponto de tornar necessária a discussão sobre a regulação e os limites a serem impostos às empresas de comunicação, resta-nos questionar: se, com seus espetáculos quotidianos, são as empresas de comunicação que nos informam e, assim, nos protegem da violência – segundo intenções declaradas –, quem é que nos protegerá da violência das empresas de comunicação?


[1] Texto escrito em setembro de 2017.

[2] Palavra que, curiosamente, vem sendo irrestritamente utilizada nos telejornais, de alguns anos para cá, em substituição a “suspeitos”, “acusados”, dentre outras menos estigmatizantes e que levavam em consideração a circunstância de que, em regra, se trata de pessoas ainda não condenadas pelo(s) fato(s) exibido(s) – e julgado(s) – pela imprensa (aliás, quem não se lembra do caso “Escola Base”…).

[3] Segundo Hannah Arendt, interesses que constituem, “na acepção mais literal da palavra, algo que inter-essa [inter-est], que se situa entre as pessoas e que, portanto, é capaz de relacioná-las e mantê-las juntas.” (A condição humana. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 228).

[4] Dentre as obras de Dany-Robert Dufour em que a metáfora apontada se faz presente, destacamos “A cidade perversa: liberalismo e pornografia” e “L’individu qui vient… après le libéralisme”.

[5] Que são os das empresas jornalísticas como um todo, tratando-se de entes privados que dependem do lucro para serem viáveis.

[6] Frui de algum prazer, consciente ou não, mas que é suficiente a levá-lo a repetir o ato.

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