Relicário

A morte de Flaviosney

A morte de Flaviosney


*Por Andrey Régis Melo


O Flaviosney nasceu em 2018. Era uma primavera de poucas flores para guardar a esperança no ventre. A seleção de futebol não encantou no país dos antigos comunistas, entretanto, a mãe tinha a esperança de que ele fosse o novo menino Neymar em 2036. O Flavinho foi muito bem no outubro cinza. O idiota do pai tornou-se presidente. Flaviosney sentia-se empresário. Tinha verdadeiro pavor quando pensava no pai, assalariado, empobrecido, aposentado antes da grande reforma. O velho Geraldo Vandré Silva morreu de desgosto na primavera de 2022. Era paraibano como o homônimo famoso. Cantarolava enquanto fazia o reboco dos edifícios: “prepare o seu coração / Pras coisas / Que eu vou contar /Eu venho lá do sertão”. Pensava na entrega do diploma para o negro Flaviosney. 
Dona Joyce era ambiciosa. Ensinou muita coisa para o Serginho. Flaviosney Sérgio da Silva. Mas ela não gostava do Silva, exceto quando sacava a pensão por morte do falecido. Dizia para o filho sobre as maluquices do pai. O filho seria patrão. – Universidade pra errar até o formato do planeta? Admirava o véio dono das lojas com a estátua gigante na frente. Recordava do vídeo em que os pobres tentavam fazer a seu modo a compensação tributária; mas eram presos por pobres fardados. Ela nada sabia de tributos. Sonhava com a “Flaviosney S.A.”. O Brasil finalmente seria uma democracia racial. Ela não entendia muito a política. O presidente não era racista, afinal, o papagaio negro sempre aparecia nas entrevistas do mandatário. O filha-da-puta do Geraldo não tinha plano de saúde. A véia morreu em casa. Uma benzedeira aliviou as dores provocadas pela metástase (social). Os lábios murmuraram alguma coisa no leito da morte. Flaviosney não compreendeu muito bem. Um tio disse que o negro Geraldo havia recebido tratamento no serviço público de saúde, curou-se do câncer sem gastar um único tostão. Flaviosney odiava o Estado. Era um liberal. Deitou-se tarde da noite para recuperar as energias. Acordava cedo para cuidar da sua empresa de tomates. Entregava as caixas nos bairros nobres. A produtividade era medida no aplicativo. Flaviosney tinha 4,9 na avaliação virtual. Perdeu 0,1 na entrega para o comunista Dino. Sentia-se cansado. Dores nas pernas e nas costas. “Tomates verdes: pedalar e entregar” era o lema da empresa. Sobressaltou-se em luto. Tinha manchas vermelhas nos pulsos. Lembrou do picante Ketchup 17 no bolorento pão. Tinha fome; mas não era esquelético. A cidade ainda dormia. Odiava as sinaleiras vermelhas. Estava atrasado para a primeira entrega da madrugada. Os tomates verdes espalharam-se no chão na velocidade do estrépito. O motorista xingou-o: “Olha o sinal vermelho, babaca”. Detestava a cor vermelha, por isso não respeitou o luminoso que indicava a parada obrigatória. Os homens da Salvamos S.A. verificaram o RG. Deixaram o atropelado agonizando no local. Flaviosney escutava a distante balbúrdia da boate Damares Dancing Club. Os homens de bigode amalgamavam os seus suores antes de voltar para as suas esposas.  O derradeiro suspiro aproximava-se no gélido asfalto. O bolicheiro Castro em fúnebre sarcasmo cantava Belchior: “eles venceram / e o sinal está fechado pra nós / que somos jovens”. O céu poluído de 2040 avermelhava-se no horizonte; que dia lastimoso para a morte do liberal Flaviosney. Os veículos esmagavam a mercadoria. A última sirene indicava a chegada da Katadefunto S.A.; os atendentes ligaram para a central enquanto admiravam os livores cadavéricos. A parcela estava em atraso. O indigente corpo foi removido à calçada da direita para não prejudicar o trânsito da elite. Os abutres da espécie guedes economicus planavam na imensidão celeste dos altiplanos brasilienses. O cadáver de Flaviosney era mais uma vítima da peste primaveril de 2018.

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