Entrevistas

Entrevista com Camilo Lucas

 Em 2007 fizemos uma parceria com a Jararaca Alegre, a revista independente, em atividade, mais antiga do Brasil, e para selar esse pacto entrevistamos o seu editor Camilo Lucas, hoje (ir)responsável pela coluna O guia do roqueiro impublicável. A entrevista acabou virando um bate-papo informal, com entrevistadores, vez ou outra, falando mais que o entrevitado, sem contar que não conseguimos reproduzir os gaguejos do nosso interlocutor.

Camilo é um sujeito genial que contribuiu e contribui de forma paternal para continuidade dos Impublicáveis.

 

Robert: Então vamos começar falando da Jararaca. A Jararaca Alegre começa como um jornal do grêmio. Como é que você conta a história da Jararaca?

Cind: Tem um pouco dela no livro…

Camilo: É basicamente aquilo que ta ali. Quando a professora de português resolveu fazer um grêmio, meu colega de sala, geniozinho, ia ser o presidente. Tinha que fazer um jornal pro grêmio, e como eu era o desenhista da sala, eu fui chamado. Esse jornalzinho começou em 74, estávamos na sexta série. Na sétima série eu já estava enjoado daquele jornalzinho, de colocar folclore, sete de setembro, Santos Dumont, essas coisas. E tinha um outro amigo meu também da mesma turma que era mais espírito de porco. O jornalzinho faturava muito patrocínio que ficava pro grêmio, a gente não podia nem tomar uma coca-cola com o dinheiro, nem uma coxinha na hora do recreio. Eu carregava o piano no jornal. Ele pôs pilha em mim: você que faz tudo mesmo, a gente faz um jornalzinho nós dois e fica com o dinheiro. Então eu continuei carregando o piano e dividindo o dinheiro com ele!

Marcelo, meu amigo até hoje a gente é amigo de a infância, grande amigo meu…

Quando a gente começou esse jornalzinho do grêmio ele chamava o Curupira, só que quando nós fizemos essa dissidência ele virou o Barato que Não Sai Caro. Mas era muito ruim o nome. Saíram umas três ou quatro edições. Eu estava querendo encontrar um outro nome e lendo a historinha lá do WallDisney, da maga Pataló e acho que da maga Mimi, elas estavam indo pra o Congresso das Bruxas lá em Jararaca Alegre. Apareciam voando nas vassouras e a plaquinha com a seta: Jararaca Alegre a tantos quilômetros. Aí, com esse nome, tinha que surgir uma personagem atrás. No começo ela parecia mais uma jibóia.

Cind: No livro você diz: “Droga, agora a Disney vai cobrar os milhões que eu ganhei!!”.

Camilo: É, agora só o que falta acontecer alguma coisa.

Bom, tomara que aconteça!

Robert: Estamos correndo atrás de um processo, porque patrocínio tá difícil, então vamos ver se um processo dá certo. Alguma coisa a gente tem que conseguir.

É isso, quando a gente fala do que é impublicável, estamos falando da dificuldade de publicar pelos meios formais de publicação. E na história da Jararaca Alegre, percebe-se que ela não tem essa coisa de ter que entrar em concorrência de editora, porque tudo que envolve a Jararaca é a própria Jararaca. Tem a Jararaca Books, etc.

Vocês já tentaram uma editora pra ela? Ou ela já nasce com essa ideia de ser independente?

Camilo: Não, sabe que eu nunca tentei uma editora pra Jararaca Alegre. É que sempre foi uma coisa informal, tão divertida, e com o intuito de divertir. Na época era pra comprar uma calça pra cada um ou pra ir pra praia nas férias, ou pra ir pra um show.

Robert: Vocês também têm liberdade criativa, não é?

Camilo: É, a gente tem liberdade criativa total. Por ter esse espírito assim, até mesmo de politicamente incorreto. A gente nunca teve preocupação de seguir nenhuma linha ou de ser fiel a nenhum princípio. Nós nunca fomos do mal não, nós sempre fomos sacanas…

Robert: Do bem também não.

Camilo: É, do bem também não. Muita gente nos criticava, porque dizia que tinha que fazer isso ou aquilo, e a gente só fazia o que divertia. E eu fui ganhar minha vida como jornalista e publicitário. Eu fui editor de jornal, primeiro eu fui repórter, fui chargista, trabalhei num departamento de arte no Diário do Rio Doce lá em Valadares, que funcionava como agência. Não fiz curso superior não, mas eu fiz INAP, fiz um estágio em agência, montei uma agência pra mim. A Jararaca Alegre saiu a vida inteira sem data marcada, O Baú da Jararaca Alegre foi o primeiro livro que eu escrevi pra ser livro, mas eu já tinha três livros anteriores que eram coletâneas de charges, cartuns e texto publicados em jornal. E pra financiar, eu sempre usei os contatos que eu tive, os meus amigos, as pessoas que já conheciam meu trabalho. Se eu fosse procurar um editor, ele ia analisar, ia ver se enquadrava, ia editar, ia administrar a venda e ia me dar de três em três meses lá dez por cento do que vendeu. Eu não ia ser dono disso aqui, eu não ia te dar esse material que nem eu estou te dando isso aqui. Não ia ter isso.

Agora, é claro se tiver um editor interessado e quiser publicar meu trabalho eu acho interessante porque vai divulgar pro Brasil inteiro, sei lá.

Robert: E já é um trabalho concretizado.

Camilo: É, já se desenvolveu. Só que eu nunca foquei nisso. Eu sempre corri atrás de outras coisas. Nunca falei: agora eu vou parar, vou procurar, vou visitar uma editora bater na porta e mostrar.

Robert: O que é frustrante, porque quem corre atrás disso quer uma comprovação. Se eu for aceito é porque eu sou bom se não, não.

Camilo: Até pra provar pra ela mesma que ela é boa, ela aceita uma deformação.

Robert: E eu penso que não é por aí. Se lançar um disco é difícil, você manda uma demo e o cara…

Camilo: Aqui, (aponta para Luiz que acabou de chegar) meu amigo é músico, tem uma banda, gravou recentemente um CD independente.

Robert: Então ele deve saber. Com um produtor que pode sentar e ouvir já é difícil. Em cinco minutos ele escuta uma música sua e já dá pra ter uma ideia do que é o seu trabalho. Com o texto é mais difícil ainda, o cara tem que ler…

Luiz (amigo do Camilo): Ler demanda uma paciência maior, demanda uma dedicação maior, o cara pode estar lá tomando uma cervejinha e escutar a música.

Robert: O brasileiro lê pouco, mas não é por aí, senão a Jararaca não se justificaria.

Camilo: É engraçado, e as pessoas guardam. Lá em Caratinga tem umas versões antigas, todas manuseadas, cheia de orelhas. Outro dia uma amiga minha falou que no criadinho do lado da cama fica a Jararaca dela.

Robert: Fica uma coisa esquisita de falar pra alguém: deixei a Jararaca Alegre ao lado da minha cama…

Luiz: Estava tão sozinho numa noite, peguei a Jararaca…. e abusei da Jararaca.

E era alegre ainda!

Camilo: Um dia desses, eu fui ao show dos Mutantes promovido pelo circuito cultural do Banco do Brasil. Eu consegui um contato com a gerente de marketing do circuito que veio lá do Rio por causa do show.

Quando eu liguei, ela perguntou: “Camilo de onde?”

Aí pensei: “Puta merda!”; e falei: “Da Revista jararaca Alegre”.

Ela falou: “Revista o quê?”

Até explicar. E fora com essa conotação que está hoje, esse negócio de alegre… é uma jararaca. O cara vai até pensar que é uma revista gay.

Quando a gente fez não tinha esse negócio de gay, alegre. Nada contra, por mim, se fosse uma revista gay, seria uma revista gay, mas não é. Não tinha essa nomenclatura naquela época, vamos dizer assim.

Em volta dela aconteceu muita coisa, muitos movimentos culturais, muita festa. A gente fez a Jararaca Song, agora tem a Jararaca Books, a Jararaca Records. Tudo mais pra uma turma de amigos mesmo. Acabou criando um guetozinho.

Robert: Ela sempre circulou em Caratinga ou em outros lugares também?

Camilo: Sempre em Caratinga ou com os caratinguenses que moravam fora.

Agora vai ficar aqui e lá. Vamos mudar o projeto dela pra ficar mais universal.

Robert: Houve algum momento em que ela foi mais informativa ou de denúncia, até porque foi em 74 que começou o jornal, o Curupira. Você ainda pega um pouco do regime militar. Embora fosse mais velado, tinha em todos os lugares.

Camilo: Tinha, tinha sim, inclusive nós até tentamos tomar o centro dos estudantes via eleitoral. Mas também frequentava umas reuniões do MR8, que foi levado para Caratinga por alguns caratinguenses. A gente queria ganhar o centro dos estudantes. Eu fiquei sendo vice da chapa, o presidente era o Salatiel que era do MR8. O Salatiel falava pra caramba, ele tinha oratória, chegava e metia o pau no governo, falava da ditadura. Isso na sala de aula de sexta série, sétima série, oitava série. Ele estava no segundo ano científico, na época, eu estava na oitava e o centro dos estudantes representava de quinta série até terceiro ano. Então ele falava pros meninos o que tava rolando, menino que nem sabia o que era ditadura. Os professores, às vezes, expulsavam a gente da sala, e enquanto ele falava, eu desenhava no quadro. Ele falava uma coisa, eu desenhava com giz e dava o maior ibope. Mas quando a gente saía, vinha o outro pessoal, que falava: “eles são comunistas, são maconheiros, se eles entrarem lá eles vão trazer o comunismo pra Caratinga”. Só que eu era mais esquerda festiva, eu tinha aquela consciência, mas eu não ia pegar em armas, tanto é que eu parei de ir quando eles falaram numa reunião sobre se um de nós fosse preso ou torturado. Não sei se fui eu ou se foi um outro que perguntou: e se um de nós for preso e torturado, e até mesmo morrer nos porões da ditadura? Aí alguém que estava conduzindo a reunião falou: isso aí vai ser triste, mas vai ser bom pro nosso movimento, porque nós vamos ter um mártir, alguém pra simbolizar a nossa luta. Isso aí no sábado a tarde, meus amigos lá no maior rock e eu lá… Aí eu me afastei… Mas eu continuei pensando globalmente e agindo localmente. Eu fui chargista durante uma época muito intensa que foi durante a época do fim da ditadura, que foi a transição. Tenho até algumas charges aqui dessa época. Eu fiz esse livro só com charges com ordem cronológica. Eu peguei desde o dia que o congresso não aprovou a lei que ia passar a eleições para eleições diretas. Passaram para a campanha que fizeram pra eleger o Tancredo Neves, que seria fazer uma campanha contra o regime usando o próprio sistema do regime, o Colégio Eleitoral.

A última charge é uma champanhe estourando. No rótulo da champanhe está o rosto do Tancredo Neves e na rolha que está estourando está escrito ditadura.

Nas minhas charges, eu tentei passar consciência política, sem pegar em armas, sem ir pras ruas. Não, eu saí na campanha das diretas já. Todo mundo de camisa amarela, era ir pra rua, mas sem quebradeira. Era uma campanha pacífica. Muito carnaval.

Robert: E o rock‘n roll? A Jararaca Alegre é rock também?

Camilo: A Jararaca Alegre é rock’n roll puríssimo. O rock’n roll faz parte mesmo, até o próprio tipo de humor que a gente fazia era baseado no rock. O próprio estilo de vida, de você ser original e não estar nem aí, você correr por fora, ser outsider. Isso sempre encaminhou a Jararaca Alegre, a gente conseguiu fazer as coisas, mas sendo outsider, sem entrar pra o esquema.

As influências são a MPB, basicamente Chico, Milton, Caetano, Gil, e o Clube da Esquina, principalmente. E o rock dos anos setenta, o rock clássico: Queen, Led Zeppelin, Deep Purple, Beatles, Rolling Stones, New Young; o rock progressivo: Yes, Jethro Tull, Pink Floyd. Do rock brasileiro, a gente ouvia muito na época: Casa das máquinas, Rita Lee, Raul, Terço, Mutantes. Tudo que veio depois disso, se foi bom, acabou entrando, mas isso aí foi a base. Até pra criação.

Robert: Eu notei que no processo criativo da revista, não tem um padrão. É como se ela fosse repensada a cada edição.

Camilo: Não é nem repensada, ela é espontaneiada… Porque a ideia principal é que eu vejo uma coisa legal e quero passar pra vocês. Por exemplo: tem o Raul Miranda falando sobre música, música ruim… Cabeto falando sobre o Cachorro Doido, quem leu e não sabia o que era o Cachorro Doido continua sem saber… mas ficou um texto muito legal. Tem esses convidados especiais, os cartunistas, com charge e cartum. Tem o Max Portes, ele é um escritor caratinguense, tem uma editora, acho que tem três prêmios Nestlé, quarenta livros publicados, de poesia e romance… Até quero apresentar vocês pra ele qualquer hora. (Ele falava dos colaboradores da penúltima revista lançada)

Então são coisas pra quem gosta de ler, pra quem tem senso de humor, e sem academicismo. Muita gente gosta mais de mostrar o que leu quando escreve do que passar o que reteve de bom com o que ele leu. Enche de citações e fica uma coisa pedante. Aqui a única regra básica é que seja divertido, que você leia com prazer, talvez até se sinta mais leve depois de ter lido.

Robert: E o filme? Jararaca… Como seria?

Cind: Seria o quê, Jararaca Filmes?

Camilo: Sei lá, Jararaca Movies? Jararaca Fox Vídeo?

Eu estou com um rascunho de um Dvd da Jararaca, faz parte do projeto de trinta anos. São umas cenas que estão gravadas. Tudo que está aí tem alguma coisa lá guardada, em vídeo. A ideia é fazer um documentário pra um público específico, pra turma da época. Ia ser um complemento do Baú e do Álbum da Jararaca Alegre. Os três formariam um kit dos trinta anos da Jararaca. Só que está no stand by.

Então surgiu a ideia desse filme, o Ziraldo me intimou a fazer. Eu pensei que ele estava brincando, ele fala isso tem um tempo já. Algumas histórias, as mais curtinhas já tinham sido publicadas na minha coluna jornal, de onde eu tirava as coisas pra fazer livro. Ele tinha lido aquela história da Piruka, pedi pra ele fazer o prefácio pra o livro. Tem nesse livro aqui, “O Vermelhinho e o Verdinho”.

Aí ele falou que dava vontade de fazer um filme do Feline com os meus casos. Só que ele é muito exagerado, quando ele quer falar que um cara é gente boa, ele fala que é o cara mais gente boa do mundo… Então eu levei nesse espírito também. Feline! Vê se se compara Feline com alguma coisa!!! Nem tem comparação, mas quando o livro saiu, eu mandei pra ele. E esse ano eu fui ao Rio, pra o lançamento do livro Ninguém segura Caratinga. Quando eu encontro com ele lá, ele faz a maior festa comigo porque ele leu o livro. Eu fiquei de bobeira, porque ele leu, porque ele não tem tempo. Ele recebe uns vinte livros por dias, livros, cd’s. Tem uma banheira na casa dele, lendária, lotada com essas coisas esperando pra serem vistas.

Na hora ele reforçou a ideia, “faz um roteiro lá, coloca diálogo, coloca uma dramaturgia…” Depois eu estava conversando com ele, apareceu um cara que tinha ganhado um direito de livro dele pra fazer filme. Ele diz: “você tem que fazer um filme é com as histórias da turma da Jararaca Alegre, nos anos setenta eles fumavam maconha, eles eram comunistas, ouviam rock’n roll”. Ele falou que ele estava com dois livros dele pra fazer filme, e ele disse: “não, faz o dele primeiro, bota o dele na frente”. Eu fiquei todo inchado, mas deixei ainda, mais como elogio mesmo.

Depois dessa, nós fomos pra uma pizzaria em Caratinga, depois de um evento, fomos lá mais pra conversar, lá ele falou sério comigo, pra eu escrever. E eu disse: “então vou escrever”. E estou escrevendo.

Cind: E você se sente impublicável?

Camilo: Eu acabo me sentindo, porque se não fosse eu, eu não estaria publicando, eu tenho que me publicar pra ser publicado. Então eu sou um impublicável publicado.

Robert: Há uma relação entre Jararaca com o nosso movimento, por ela ser de alguma forma impublicável e por trabalhar com várias linguagens. A Jararaca é também um movimento, tem a charge, música, filme. A gente quer trazer essa parte pra o leitor, aquilo que não pode ser lido dentro das formalidades, mas existe.

Camilo: Pela primeira vez eu to com um projeto sério pra Jararaca. E justo nessa hora a gente fica se conhecendo. Antes era mais porralouca, agora tem mais conteúdo. Com essa edição a gente melhorou muito o nível das matérias, quero lançar pra um novo público, criar um público pra ela, fazer crescer.

Robert: A ideia é essa é fazer o texto circular. O que faz o texto é o movimento mesmo. E nós entendemos a Jararaca como texto também. Agora nós vamos sintetizar esse negócio que nós gravamos aqui e tentar fazer uma entrevista.

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