Robert de Andrade

Os donos da rua: a cultura do desrespeito no trânsito brasileiro

Em 312 a.C. o Império Romano já havia criado sua primeira estrada, tornando-se mais tarde responsável pela construção de uma extensa rede de vias pavimentadas. O objetivo era, sem dúvida, a expansão do império, ligando todas as regiões do continente europeu e possibilitando abastecimento, comércio e a mobilidade da população em geral.  A circulação por esses caminhos se dava essencialmente por veículos de rodas de tração animal e cavalos, tendo larga utilização a partir do século XVII.

As estradas europeias surgiram bem antes dos automóveis que foram inventados no final do século XIX, ou seja, elas não foram criadas para os mesmos. Sua principal função era a conexão entre lugares distintos independentemente do tipo de transporte que fosse utilizado. Os veículos é que tinham que se adaptar às características físicas das vias, que em sua maioria eram compostas de pedras assentadas sobre argamassa.

O Brasil do século XIX não teve investimentos significativos destinados ao desenvolvimento rodoviário. Existiam poucas estradas de rodagem que foram construídas durante o Segundo Reinado, de D. Pedro II. No início do século XX, esse cenário muda com a introdução do automóvel no país, que se fortalece com a chegada das montadoras Ford e Chevrolet, na década de 1920. Em 1930, a frota nacional de carros já atingia 250 mil unidades.

Nesse mesmo período, motivado pela implantação da indústria automobilística, o desenvolvimento rodoviário teve grande impulso. Durante o governo de Washington Luís (1926-1930) são estabelecidas as bases da rede de rodovias brasileiras, com o Plano Catrambi. Em 1930 já existiam 2.255 km de estradas de rodagem e 5.917 km de estradas carroçáveis. Ao contrário do que se ocorreu na Europa, no Brasil as estradas foram construídas para os carros, elas é que devem se adequar as necessidades dos veículos.

A lógica do trânsito brasileiro é pensada da perspectiva do carro. Diferente da realidade europeia, cuja função dos caminhos é ligar locais distintos, o papel das vias no Brasil é receber os veículos. Do outro lado do oceano, o excesso de automóveis nas ruas leva a adoção de medidas para tirá-los de circulação, privilegiando o transporte coletivo, pois os engarrafamentos interferem diretamente na principal utilidade das ruas, a mobilidade. Do lado de cá, os congestionamentos são encarados com um problema de falta de espaço para circulação, resultando em intermináveis obras para ampliação desse espaço.

Em alguns países europeus a multa por pane seca pode chegar a 1000 euros, contra 85,13 reais no Brasil. O poder que foi dado ao automóvel brasileiro é de uma permissividade tão grande, que as penas aplicadas ao motorista que tira uma vida no trânsito estão mais próximas da advertência que da punição justa. Por mais estúpido que possa parecer, vivemos em um país onde um objeto inanimado é mais valorizado que o ser humano. Aqui os carros podem tudo e, sabendo disso, os condutores abusam dessas prerrogativas que já estão arraigadas em nossa cultura.

Atravessar a rua de alguma capital, na faixa de pedestre, como manda o Código de Transito Brasileiro, não é fazer uso de um direito do pedestre, mas enfrentar o risco de compor a estatística nacional de mais 40 mil mortes no trânsito. Mas em uma coisa o Brasil já superou o continente europeu, o número de vítimas fatais, que lá está em torno de 30 mil, lembrando que eles têm uma frota de carros cinco vezes maior que a nossa e a população supera os 730 milhões habitantes.

Robert de Andrade

Previous post

Inocentes, mas nem tanto...

Next post

Morre aos 89 anos Jorge Loredo, o Zé Bonitinho