Robert de Andrade

O Assassinato de Machado de Assis

 

Quando eu estava na 5º série, no primeiro dia de aula, entrou na sala uma professora de cabelos longos e grisalhos e disse que iria ensinar literatura. Uma disciplina que não era português nem matemática e tampouco ciências. A literatura que ela propôs nos ensinar era muito diferente daquela que era praticada dentro na minha casa. Ela não falava das “Reinações de Narizinho” e nunca citou aquele menino aventureiro de Saint Exupery. Márcia, ou melhor Dona Márcia, era uma mulher sisuda, a professora perfeita para a escola que, em 1991, ainda tinha no currículo escolar a matéria Moral e Cívica.

A professora girou sobre os calcanhares num movimento preciso e parou diante do  quadro-negro. Em menos de um minuto desenhou um gigantesco diagrama, os traços eram fortes e dos corredores do colégio dava para se ouvir o barulho do giz sendo cravado na lousa. Dentro das caixas de textos escreveu palavras em uma língua que desconhecíamos, realismo, regionalismo, autenticidade, ambiguidade e outras barbaridades. Depois leu alguns trechos do livro Memórias póstumas de Brás Cubas, seguidos de comentários no mesmo idioma ininteligível que havia escrito no quadro. Nossas gargantas secavam, o suor escorria pelo rosto, mas os olhos dela brilhavam como os olhos de uma beata que fora escolhida pelo padre para ler o sermão dominical. Brás Cubas era o seu Jesus e Machado era o seu Divino Espírito Santo.

Ela ficou um ano tentando nos converter ao que chamava de cultura erudita. Para isso, usou todos os tipos de coerção como “quem conversar terá que redigir um resumo comentado do primeiro capítulo do Brás”. Seu emplastro não curou ninguém da pseudo-síndrome-da-falta-de-cultura-erudita, pelo contrário contaminou a muitos alunos com o pânico-machadiano.

Descobrir Machado de Assis nas aulas da D.Márcia foi como conhecer o amor começando pela dor da separação, foi como conhecer o filho no seu leito de morte, foi como ir a uma ópera quando já se perdeu a audição. “Assis”, para nós, se tornou a forma reduzida de “Assassina”.

Robert de Andrade

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