Cind Canuto

hermético asséptico contracético

Ontem o meu time ganhou e eu não assisti ao jogo. Não sei bem por que chamo de meu time. Deve ser porque torço para ele desde que vim para Minas. Sempre que ele ganha fico feliz e sempre que perde não ligo a mínima, porque não tenho que ficar triste por causa de uma besteira dessas. É claro que meus colegas de trabalho sempre caçoam quando o meu time perde. Coisa de homem, herança guerreira antiga. Não assisti ao jogo porque fui à igreja. Não fui à igreja por causa de Deus, mas porque o domingo fica muito chato sem a igreja.

Também porque não faz tanta diferença assim assistir ou não a um jogo quando se trabalha onde trabalho. Os funcionários sempre conversam sobre o jogo, praticamente descrevem tudo, o que às vezes é melhor do que assistir. Prefiro ir à igreja. Não consigo entender como as pessoas conseguem viver a vida sem fingir ao menos que tem algo de religioso nelas. Eu só precisei de uns domingos completamente entediado para me decidir cristão praticante. Não há nada na TV, não há nada aberto, as praças esvaziam de crianças quando começa a escurecer, isso quando há uma praça por perto. Por que não, então, acreditar em Deus e ver moças bem vestidas todos os domingos? Conversar polidamente sobre o que for e ao mesmo tempo sem compromisso nenhum, coisa que não se faz nos bares, e por outro lado nem em reuniões de trabalho.

Já morei em muito lugar no Rio e em Minas. No Rio foi em todo canto, mas minha mãe me criou em Duque de Caxias. Ela mora lá até hoje, com minhas irmãs e sobrinhos. Lá ninguém nunca mexeu com drogas e nunca levou bala perdida. Eu não sou rico, mas fui bem-educado. Não entendo tudo o que dizem os filósofos, mas não me desentendo com ninguém. O oposto do conhecimento eu sei que não causa transtornos. Há inclusive gente rica mal-educada que eu sei. Essa gente sofre, eu não.

Meu time sempre ganha. Quando não ganha, eu não ligo. Mas finjo que sim, claro, fingir não dói. Ninguém gosta de ver a gente feliz toda vida. Minha família tem lá seus problemas, mas não comigo. Eu sempre me virei com minhas crias, eu não causo problemas, eles que me causam problemas sempre. Mas também não me importo, para isso servem os filhos. E eu que sou pai sirvo é para resolver os problemas mesmo.

Eu já passei fome, frio, sede, sono; quase morri afogado e de cansaço. Não tenho medo de morrer. Eu sou saudável, não tenho vícios. Nem mesmo o café, que tomo todos os dias, eu preciso para viver. Bebo todos os dias porque todos à minha volta também tomam, e porque ele não faz mal. Houve um tempo em que disseram que fazia mal e eu parei. Alguns meses depois disseram que não fazia mal mais. Creio que ninguém soube que eu tinha parado e nem que tinha voltado, e eu mesmo nunca fiz alarde. Se eu começasse a fumar e a beber, acho que seria o mesmo.

Percebi que posso realmente viver só eu e eu mesmo, apesar de não viver. Acredito na ciência, apesar desses seus descabimentos de dizer uma coisa e depois desdizer. É melhor acreditar nela que tentar criar minha própria ciência. Acredito também em estatística, e que ela sempre pende para o bem do meu lado. Bem, às vezes ela falha. A primeira vez que eu fui assaltado foi em Belo Horizonte, tendo morado sempre no Rio, que é o Rio. Mas ainda está em cima da linha estatística, pois acredito que os ladrões assaltem mais as pessoas que parecem perdidas, como eu que estava no meu primeiro dia na capital mineira. É por isso que hoje eu sou bem seguro de mim, mesmo que eu esteja completamente perdido. Há quem defenda a exposição de seus sentimentos reais, no entanto, ainda que eu concorde em defender a sinceridade, já sei que parecer perdido em nada ajuda e ainda atrapalha.

Se eu ficar parecendo perdido e desesperado, todos à minha volta ficarão ainda mais perdidos e desacreditados e a tendência será dar tudo mais errado do que daria. Julio Verne tentou me ensinar isso ainda em tenra idade, quando aquele inglês viajante ficou completamente tranqüilo com sua volta ao mundo em 80 dias sempre atrasando. Irritado sim, mas não abalado.

Minha mulher é o meu oposto, para tudo que pretende fazer ela diz no mínimo cinco vezes ao dia até chegar o dia de fazer, mesmo que seja fazer compras, coisa que fazemos todos os meses. Ela fala sobre tudo como se falar desse jeito fosse mudar alguma coisa. Bom, talvez para ela mude, talvez seja o jeito dela de se lembrar das coisas. Duvido um pouco de mim mesmo, sim, porém ao dizer muitas vezes que o que eu quero que seja é, já não duvido mais. Só sei que eu sempre me lembro.

Cind Canuto

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