The Wall: o espetáculo

Falei em texto anterior sobre a obra “The Wall”, que surgiu como um álbum do Pink Floyd de autoria do baixista/vocalista Roger Waters, e que se estendeu em outros produtos (filme, musical da broadway, espetáculo). Agora este show correu o mundo e não é tarde para falar das minhas impressões ao assisti-lo, em sua passagem pelo Rio (no Engenhão, abril deste ano).
Me lembro de uma crítica da Veja a um álbum solo de Roger Waters, se não me engano o “Amused to death”. O crítico (?) achava ridículo Waters querer elevar o rock à condição de grande arte. Para o autor da resenha, rock é diversão barata, descartável e que deve se manter em seu devido lugar.
Certas matérias que lemos nas resenhas de entretenimento nos fazem concordar com aqueles que dizem que a crítica morreu. Aliás ainda não, pois Barbara Heliodora ainda vive (estou enganado?) mas com certeza ela é a última crítica que deve ser levada a sério. Desde o advento das revistas pop, os críticos endeusam as maiores bandas de todos os tempos da última semana, desprezam a história, relevam a importância dos gênios que vieram antes deles nascerem, para na outra semana recomeçar o ciclo vicioso, e sempre embasados em critérios e interesses pessoais. Pois o rock é, sim, grande arte. O rock é a música clássica do século XX e ainda não encontrou substituto à altura no século XXI. É a fonte da juventude, é a encubadora do novo, é de onde saem as atitudes que serão criticadas ao nascer e depois apropriadas por todos os outros subgêneros, no momento em que já estarão obsoletas para o próprio rock, que já estará gerando outras, e assim por diante.
O rock de Roger Waters é arte pura. O espetáculo “The Wall” é seu ápice. Baseado em um disco grandioso, de rock progressivo conceitual – gênero que provoca urticária nos críticos – Waters desenvolveu um evento multimídia em que dialogam música, teatro, cinema, performance e artes plásticas, numa grande instalação que discute filosofia, política e história. Tudo isso costurado em 3 horas de música (com um intervalo entre o “disco A” e o “disco B” do produto original, um álbum duplo) durante as quais ninguém consegue se distrair. O público fica hipnotizado o tempo todo.
Não sei quantos projetores, sincronizados, desfilam pelo telão formado por blocos de cimento (de papelão reciclado) que formam o “Wall” do título, de mais de 40 metros de extensão por não sei quantos de altura – isso tá lá no Google – construído e demolido durante o espetáculo. Crianças recrutadas em cada cidade por onde o show se apresenta atuam como os estudantes da faixa “Another brick in the wall part II”. Waters se transforma de criança traumatizada em líder político carismático, numa crítica ao totalitarismo. Um balão em forma de porco, referência a outro álbum do Pink Floyd, “Animals”, flutua e cai sobre o público, que ávido fatia o mesmo para levar pra casa (eu estava bem abaixo de onde ele caiu e tenho guardado um pedaço do seu lombo). (não, ele não vai a leilão).
É como assistir a uma ópera de Puccini enquanto ele ainda é vivo. Ou a um recital de Mozart regido pelo mesmo. Cada época tem seus clássicos. Os de nossa época ainda estão vivos – quase todos. Ainda é tempo de desfrutar de suas apresentações. Dá dó da mediocridade ler uma cobertura como a publicada por O Tempo, na época (mas gerada a partir de São Paulo), na qual o redator, que não assina, afirma que “apenas a música do disco The Wall não sustenta um espetáculo inteiro”. Bom, se você nasceu ontem, ou não sabe do que se trata, e vai só pra ver qual é, talvez não se sustente mesmo, pois suas informações são outras. O mesmo acontece com quem vai assistir “Aida” sem saber do que se trata! Mas me fala quantas pessoas estavam ali, e não sabiam, de cor, o disco The Wall inteiro?
E também me diga quantas pessoas foram ali com o espírito desarmado e não saíram fãs de Pink Floyd?
Um show como este deixa óbvio o empenho com que foi criado, o trabalho e dedicação que exigiu, a ourivesaria que é sua realização a cada vez que acontece, o nível de exigência de sincronicidade entre os envolvidos para que tudo corra em perfeita harmonia até o fim, gerando um prazer sensitivo que supera em muito a expectativa dos que o buscaram. Ao montar “The Wall” mundo afora, Roger Waters mostrou que o rock é grande arte quando tem de ser, e outros membros do amplo espectro musical que forma a categoria Rock mostram que ele também pode ser diversão descompromissada, ativismo político, deleite musical, terapia de grito primal, orgia hedonista, enfim, todo um conjunto de atitudes e sensações guiadas pela música, como não se encontra em nenhum outro gênero musical.
Agora dá licença que eu preciso ir comprar meu ingresso pro show do Robert Plant.
Camilo Lucas
Os Impublicáveis