N0ssa expulsão do paraíso
Nossa expulsão do paraíso[1]
Uma das coisas mais interessantes sobre as quais a Psicanálise me fez pensar diz respeito à nossa expulsão do Paraíso. Isso mesmo. Sobre aquele lance de comer a maçã proibida e, a partir de então, ter vergonha de nossos corpos nus, ter de trabalhar para comer, sentir tesão pela marquinha de biquíni da Eva etc.
Ao sermos despejados do Éden, nos tornamos homens e mulheres. O mundo evoluiu, o machismo já não impera e hoje, em boa parte do globo, esses homens e mulheres têm direitos iguais. Inclusive, dada a criatividade humana quando se trata do assunto, vê-se que são muitas as transições de gênero que hoje se admite entre os sexos, sem as culpas de outrora.
E o excesso de nomes possíveis para o que no mundo natural do Paraíso seria denominado simplesmente de macho ou fêmea vem bem a calhar quando se trata de tentar explicar – representar – nossa expulsão daquele recanto de paz, sossego e tranqüilidade pelo qual muitos ainda anseiam. Vem bem a calhar porque, diferentemente do que ainda pensa boa parte da população mundial, o que implicou nossa retirada do estado de natureza não foi a atenção dada a uma serpente ou a mordida numa maçã. Pelo menos não no sentido literal ou psicótico desses substantivos.
Aliás, é justamente a necessidade de ter que significar nossa expulsão que explica o porquê do amargo despejo arcaico. É a possibilidade de enxergar uma maçã para além da fruta e uma serpente para além do ofídio. Ou seja, é a inevitabilidade do simbólico – e, logo, da palavra – que nos diferencia de uma samambaia ou de um cabrito, já que é a partir deles que nos sabemos vivos, diferentemente dos animais ou plantas, que simplesmente são, sem ter consciência de sua existência, sem ter consciência, sem ter, sem…
A necessidade da palavra e da comunicação marca a nossa não-integração com o natural, a nossa desintegração complexa. Uma incompletude inerente a nossa condição e que nos faz falar, falar e falar, na tentativa de formarmos laços que, em nossa fantasia, nos tornarão completos, devolvendo-nos ao Paraíso perdido.
Mas aí surge o mal-entendido, próprio dos seres não-absolutos, que têm consciência do que foi e planejam o que será; que raramente se detêm no que está sendo e menos ainda no que é, o que os lembra novamente de seu distanciamento da natureza, em que se existe num eterno presente, sem se lembrar de um passado ou vislumbrar um futuro.
É pela palavra e sua distância em relação à coisa falada, portanto, que temos notícia de nosso vazio próprio aos seres históricos, que precisam nomear-se para serem mutuamente reconhecidos em prol de uma realidade pactuada e, portanto, não-natural. Mas também é através dela – a palavra – que podemos desejar e, assim, tentar contornar este vazio e continuar vivendo, amando e enganando a dor que resulta daquilo que nos acompanha ao longo de toda a vida, para nos lembrar de nossa expulsão do Éden: a angústia de nos sentirmos humanos e incompletos.
Se, por um lado, a palavra é nossa desgraça; por outro, é nossa tábua de salvação.
Dela, pois, façamos bom uso.
[1] Texto originalmente publicado na Revista “Os impublicáveis”, número 1.