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Não foram as fake news que elegeram o atual presidente

As fake news têm só uma pequena parcela de culpa na vitória do candidato de extrema-direita, Jair Bolsonaro, ao posto de presidente do Brasil. Antes de dar seguimento ao texto, preciso esclarecer que estou unicamente me referindo ao termo que ganhou força e uso massivo em 2016 com as eleições presidenciais dos EUA, a campanha de Donald Trump, marcando-se pela disseminação de conteúdos falsos sobre a candidata Hillary Clinton.

Parte do eleitorado brasileiro adotou o modelo americano nas eleições de 2018, mas as notícias falsas não são uma invenção do século XXI e elas só ganharam tamanha força nas terras tupiniquins porque já somos historicamente habituados a aceitar inverdades simples em vez de tentar entender a complexa realidade de um país novo, colônia de Portugal, que só decidiu fazer daqui uma nação porque teve de abandonar sua pátria com medo de um Napoleão já bem enfraquecido. 

Para além da fantasiosa Carta de Caminha, de importante valor literário e muitas controvérsias históricas, em que se relata uma amistosa recepção dos portugueses pelo verdadeiro povo brasileiro, por eles chamados de índios, temos também a redentora Princesa Isabel, que libertou os escravos, fazendo-o por pressão dos ingleses, que não queriam manter relações comerciais com países escravocratas, e para tentar salvar a monarquia da ameaça republicana, em decisão que também teve a participação de uma elite que temia a reforma agrária proposta por André Rebouças – ou seja, a abolição se deu por questões de autopreservação política e não pensando nas pessoas escravizadas, tanto é que não foi criada nenhuma política de inclusão no pós-abolição, não havendo qualquer reconhecimento de cidadania a essas pessoas que, em sua maioria, nasceram no país.

Assim, melhor do que discutir a recolocação dos libertos na sociedade, com o reconhecimento de seus direitos civis e humanos, colocando em pauta, por exemplo, problemas como o desemprego e a fome, foi mais fácil dizer que o baiano é preguiçoso e o negro é malandro. Nessa toada, vamos acobertando a nossa história sob expressões generalistas e infundadas, como ao dizer que os próprios negros são racistas, criando a ilusão de que todos os escravos brasileiros tivessem sido capitães-do-mato e que o racismo não é problema causado pela dominação branca. É muito mais fácil aceitar a afirmativa de que nenhum político presta do que ter que pesquisar suas propostas e posição política. Assim vão sendo construídos intencionalmente os pensamentos que mantêm a elite dominante em seu posto cada dia mais seguro e distante do povo, como é o caso dos que defendem a proibição do voto de analfabetos. Opa! Já passamos por isso uma vez, valendo lembrar que, de 1882 a 1985, eles não tinham direito ao voto, e tudo começou como uma forma de manter os negros livres e ex-escravos fora da participação popular nas eleições.

Nas eleições de 2018, o discurso do candidato eleito estava direcionado a uma casta conservadora que sempre teve como prática usar das inverdades simples para manter seus privilégios, como ruralistas que veem os programas sociais como uma segunda abolição. O desespero dos fazendeiros com a perda da mão de obra ocasionada pelo fim da escravidão, em 1888, é manifesto hoje naqueles que se opõem às cotas nas universidades.

As fake news sozinhas, portanto, não teriam grande impacto no resultado das eleições passadas se não fosse o poder que tiveram de fortalecer e resgatar nossos velhos preconceitos, transformando o que antes era um medo reservado às elites em uma ameaça generalizada, levando muitos a defenderem privilégios aos quais não têm acesso. Nesse contexto, não surpreende que o fenômeno importado dos norte-americanos tenha tido tão extraordinária aplicabilidade num país que sempre teve receio de olhar para a própria história. 

Robert de Andrade

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