(des)levezas

Palavreio, logo existo

Palavreio, logo existo

Palavra

Palavra que lavra

que livra

que leva

Palavra que prova

que priva

que parla

Palavra que parece

que vale

que vela

Por essas almas parvas

parlêtres

que, sem ela, não são.

Domingos Barroso da Costa

O título deste texto faz jogo com o cogito ergo sum cartesiano, o “penso, logo existo”. Entretanto, pensamos que a fórmula do título – “palavreio, logo existo” – vai além da máxima cartesiana, na medida em que, enquanto o pensar pode ser a confirmação de uma vida subjetiva, o palavrear, enquanto dirigido a outro, vai atestar nossa existência intersubjetiva, o outro tomado como fiador de nossa existência, de nossa realidade como veremos adiante.

Marcamos aqui que, quando dizemos de palavra ou de um falar, nos referimos, de forma abrangente, à nossa capacidade de manejar recursos simbólicos complexos, como aquilo que nos permite articular o real e o imaginário.

Não por acaso, portanto, disse Hannah Arendt, em “A condição humana”, que “a existência de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos (…)”. (p. 61).

Daí já se extrai a importância do simbólico para o sujeito, sendo possível cogitar que foi o acesso ao simbólico a causa de nossa expulsão do paraíso – o fogo de Prometeu –, o que nos distanciou dos animais, dos seres de simples existência, para nos capacitar – pela palavra – à transcendência, nos aproximando dos deuses ao mesmo tempo em que nos impõe a marca de uma finitude consciente, que nos impele a falar, falar e falar pela vida e pelo mundo afora, construindo o que chamamos de cultura.

A importância da palavra e da linguagem para o sujeito é tanta, que pode Franz Rosenzweig dizer que a linguagem é mais do que sangue – frase que retomaremos adiante.

Certo é que, a nós, humanos, não basta a natureza. O biológico, no sujeito, se apresenta, então, como uma espécie de apoio para o simbólico, a linguagem nos sendo vital.

Posto isso, a confirmar a tese de Rosenzweig, temos o relato histórico do experimento de Frederico II, Imperador do Império Romano-Germânico no século XIII d.C, que, segundo consta, teria separado um grupo de mães com suas crianças recém-nascidas, submetendo os bebês ao isolamento.

Ele queria saber como iriam se comportar as crianças recém-nascidas submetidas ao isolamento, recebendo das mães apenas alimentação e higienização, sem ouvir suas vozes; o imperador queria saber suas reações e, principalmente, que idioma elas falariam. Ou seja, a fim de saber o idioma original da humanidade, o imperador determinou que as mães alimentassem e higienizassem suas crianças em silêncio, sem emitir qualquer som.

Segundo relatos, o resultado deste experimento teria sido a morte das crianças.

Dessa narrativa, reportando à articulação proposta no título, extraímos nossa condição de neótenos, dependentes do outro e das palavras que este nos transmite em ato de verdadeira alimentação simbólica, um processo de humanização que se estende no tempo e jamais se conclui, devendo ser continuado pelas próximas gerações, naquilo que Freud chamou de trabalho de cultura, que aponta para uma imortalidade possível pela descendência e pelas obras que instituem a humanidade, enquanto conceito que transcende o sujeito, como bem aponta Arendt, mais uma vez, em seu belíssimo “A condição humana”.

Podemos, então, retomar a frase de Franz Rosenzweig – a linguagem é mais do que sangue – para pontuar que, não por acaso, foi ela escolhida pelo filólogo Victor Klemperer para abrir sua obra “LTI: a linguagem do Terceiro Reich”, em que elabora tese no sentido de que o principal meio de dominação nazista teria sido a linguagem. Ou seja, se apropriando das palavras e seus sentidos, o nazismo teria conseguido dominar o povo alemão, inclusive os judeus, que, segundo o autor, mesmo sendo as principais vítimas daquele regime, muitas vezes terminavam por aderir à linguagem a partir da qual lhes era imposto um jugo desumanizante que visava ao extermínio.

E, neste ponto, impossível não nos lembrarmos da obra de Primo Levi, “É isto um homem?”, em que descreve, de uma forma angustiante, os esforços nazistas por desumanizarem aqueles que elegiam como inimigos e trancafiavam em campos de concentração. Lembremos, neste ponto, que a criação de inimigos e de narrativas que assim os afirme é das principais marcas de qualquer regime ou projeto de pretensões totalitárias, não sendo por acaso que, a exemplo do que se passou no nazifascismo e no próprio macartismo norte-americano, assistimos a tentativas de ressurreição da ameaça comunista ao lado de outras narrativas excludentes dirigidas contra as minorias, contra as quais se pretende estabelecer uma maioria patriótica e de bem.

Nem é preciso muito esforço pra sabermos para onde isso leva, a história sendo repleta de exemplos a comprovar que a barbárie, se ainda não nos alcançou, já nos espreita a curta distância, o aumento do número de feminicídios, dos casos de justiçamento e tortura em porões de supermercados, de violência contra a comunidade LGBT, os tiros de helicóptero contra comunidades pobres e as queimadas na amazônia sendo sinais mais que evidentes dos tempos sombrios que nos assolam e que, talvez, ainda piorem. Arriscando-nos a uma psicanálise do social, na qual acreditava Freud – frise-se –, temos cada vez mais a certeza de que, para aqueles que não se recordam da própria história e não a elaboram, só restará a repetição.

George Orwell, em seu distópico 1984, já chamava a atenção para os riscos da dominação baseada no domínio dos sentidos das palavras, valendo lembrar, nesse sentido, da função desempenhada pelo Ministério da Verdade, ao qual cumpria a modulação das narrativas e a transformação do passado segundo os interesses presentes e futuros do Grande Irmão. Não à toa, portanto, o lema do Partido era “Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força”, palavras que se contradizem, mas que são articuladas como se fossem sinônimos.

Qualquer semelhança com a realidade, portanto, não é mera coincidência, as chacinas autorizadas à polícia do Rio de Janeiro como bom exemplo de que, nós, brasileiros, vamos acreditando que “guerra é paz”; as reformas trabalhista e previdenciária, tais como feitas, sem qualquer protesto da população mais atingida por elas, a demonstrarem nossa crença de que “liberdade é escravidão”; e, finalmente, nossa devoção e união em torno de um pai autoafirmado forte, da escatologia e das fantasias de um mito – ou um minto, como melhor designa o objeto – a atestar a convicção de boa parte da população de que “ignorância é força”, crença, esta, muito evidente nos ataques à educação e no anti-intelectualismo mofado, que foram marcas registradas do nazifascismo e do macartismo, e que se apresenta, em nossa (sur)realidade, como uma submissão a ocultismos astrológicos, em detrimento do que nos oferecem ciência e outros saberes de mínimo rigor teórico.

Muitos estamos, pois, tal qual Alice, em seu surreal diálogo com Humpty Dumpty – extraído da obra “Alice através do espelho”, de Lewis Carroll (2009, p. 245):

“Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty num tom bastante desdenhoso, “ela significa exatamente o que quero que signifique: nem mais nem menos”.

“A questão é”, disse Alice, “se pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.”

“A questão”, disse Humpty Dumpty, “é saber quem vai mandar – só isto.”

A questão, hoje, portanto, parece centrar-se em saber quem manda. E, segundo quem manda, observamos que cachorros podem ser gatos, a terra pode ser plana, a mulher deve ser submissa ao homem, florestas não interessam, a mentira é verdade e a verdade é mentira, fatos importando menos que as convicções lastreadas em quaisquer fakenews que circulem no zap.

Mas, para além de uma demonstração de força da ignorância – de uma mediocridade orgulhosa de si –, aqui se chama a atenção para todos os riscos – historicamente apontados – desse trabalho de esgarçamento dos sentidos veiculados pelas palavras, a ruptura de seus limites, usos e interpretações. Afinal, uma vez que o habitat natural do humano é a linguagem (Dufour, 2008, p. 171), é a própria sociedade e os sujeitos que a compõem que têm sua realidade ameaçada quando veem as palavras que estruturam seu mundo comum (sua comunidade) perderem-se em relativismos imponderáveis. Ou seja, se o sentido das palavras que estruturam nosso mundo comum – e nos conferem gravidade – é livremente manipulável, o que se deteriora é a nossa realidade, podendo-se afirmar com segurança que, se o poder não se exerce e se equilibra pela força das palavras e segundo seus limites significantes, é a dominação pela pura violência que nos espreita. E mais: tendo na linguagem nossa natureza e realidade, é ao absurdo – ao surreal – que nós humanos estaremos fadados se as palavras forem destituídas do núcleo mínimo de certeza pactuada que veiculam, com o que nos tornaremos presas fáceis e desprotegidas à dominação violenta e sem limites por qualquer um que venha a se apropriar do poder – inclusive do poder de impor significado às palavras.

Dessa forma, é preciso resgatar a importância da palavra – da linguagem, do simbólico – em sua condição de verdadeira fiadora da existência humana, portadora de sentidos que asseguram alguma densidade a nós que, diferentemente dos animais, nos sabemos no mundo e, por nos sabermos, dependemos de narrativas para ordenar minimamente o real a que também nos submetemos enquanto limite extremo. Assim, especialmente se somos profissionais que vivem da palavra, dos ditos, interditos e não-ditos que por ela se expressam, mas, principalmente, por sermos sujeitos que por ela existimos, cumpre-nos, em nome da palavra, pela palavra e através da palavra, resistir contra uma tal devastação de sentidos, o que, no fim das contas, como anuncia o título, equivale a uma luta por sobrevivência, pela continuidade do trabalho de cultura, da civilização ante a ameaça bárbara.

Referências

Arendt, Hannah. (2010). A condição humana (11ª ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Carroll, Lewis. (2009). Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Rio de Janeiro: Zahar.

Dufour, Dany-Robert. (2008). O divino mercado: a revolução cultural liberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Klemperer, Victor. (2009). LTI: a linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto.

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