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Direito de quem e para quem?

Direito de quem e para quem?

Em conversa com um amigo, este contava do diálogo com um superior em seus tempos de policial, quando, já há muito graduado em Direito, prestava outro concurso público. Segundo seu relato, havia acabado de ingressar em curso de formação para integrar os quadros de um esquadrão de elite quando foi interpelado pelo superior, que lhe teria dito: “você tem que escolher: ou vai ser jurista, ou polícia”.

O diálogo e a apresentação, ao final, de uma escolha que nada deveria ter de excludente bem retratam a incompreensão que se tem do direito em terras brasileiras, incompreensão, esta, cada vez mais clara em seus efetivos danos. Explico para quem ainda não conhece a cozinha do restaurante.

No Brasil, a noção de direito, que deveria igualar a todos – pressupondo-se que todos a ele deveriam estar igualmente submetidos –, varia segundo os sujeitos e instituições que o interpretam e aplicam. Ou seja, temos vários donos do direito no Brasil. Daí, naturalizadas interpelações da espécie daquela dirigida por um policial a um de seus comandados que, pela via do concurso público, pretendia ingressar em instituição do sistema de justiça.

Temos, então, em incompreensões do tipo, a fonte de muitas das distorções que fazem do direito, nestas terras, fonte de abertas injustiças. E, vale frisar, não dizemos aqui de discordâncias hermenêuticas ou de diferenças de teses e argumentações que fazem parte do trabalho daqueles que lidam com a palavra, sua extensão significante e seus restos. Referimo-nos, sim, a graves torções e indevidas apropriações, como se, ilustrativamente, alguém pudesse se referir a um gato como cachorro ou a direitos fundamentais como garantias de bandidos.

Assim, nesse campo de batalha jurídico-semântico, vários se pretendem melhores donos da lei, de modo que haveria um direito para quem julga, um para quem acusa, um para quem persegue, um para quem defende, com maiores ou menores variações em gravidade segundo quem venha a suportar as sanções eventualmente aplicáveis. Se os fins justificam os meios – o que se traduz por barbárie e império do mais forte –, não é de causar assombro, portanto, que juízes conduzam investigações e acusações, que seja validada a produção criminosa de provas para fins persecutórios – por alguns, contra alguns, sempre –, enquanto é recusada sua utilização para fins defensivos, que a polícia arrombe e mate segundo sua discricionariedade – sempre em bairros de maioria negra e pobre, curiosamente. A completa inversão da lógica resulta na realidade de que, por aqui, os que primeiro deveriam estar submetidos à lei e resguardá-la são justamente os que capitaneiam sua violação, traindo seus limites em nome de convicções pessoais e interesses de poucos.

Seria, portanto, conveniente que, por estas bandas, sempre que se pensar ou falar em direito, despir-se de qualquer pretensão de igualdade e questionar “de quem” e “para quem” é o tal direito, com boa dose de probabilidade de que, a depender de “quem venha” (“a quem” pertença) e “para quem” se dirija, ele nada tenha a ver com aquele previsto na Constituição e nas leis.

Mas isso parece pouco importar por aqui. Afinal, é com esse modus operandi que, há séculos, uma minoria consegue manter cativa uma grande maioria, presa ao imediato das necessidades e incapaz sequer de ter consciência dos grilhões que lhe são colocados diariamente, seja pela privação de direitos trabalhistas e previdenciários, seja pelo cerco de helicópteros e tiros de fuzil.

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