(des)levezas

Entre bestas e porcarias

Entre bestas e porcarias

(…)

Na primeira noite eles se aproximam

e roubam uma flor

do nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem;

pisam as flores,

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada. (…)

Trecho do poema “No caminho, com Maiakóviski”, de Eduardo Alves da Costa

A última sexta-feira, 26/07/2019, certamente ficará marcada na história brasileira pela portaria 666 – o número diz bem da besta que a subscreve –, da larva, digo, da lavra de minúsculo ministro. Aliás, no verso da pretensão de grandeza autoritária que se expressa pela malsinada porcaria, digo, portaria, bem se revelam as dimensões da pequenez de nosso desalado batman[1] tupiniquim: um minúsculo ministro que queria ser deus, senhor de todas persecuções, acusações e julgamentos, dono da justiça que, por suas mãos, se apequena e se torna objeto de palestra para investidores[2], uma justiça a serviço do mercado!

Enfim, nada mais neoliberal e coerente para um país que regride à condição de colônia e continua surpreendendo pelo potencial de servidão e indigência daqueles que o habitam e tornam tudo isso daí possível. E se trata de uma indigência plural – poucas coisas são tão plurais neste país de profundas desigualdades –, que vai da alimentar à intelectual, a primeira limitada – sempre – aos pobres, enquanto a segunda se mostra muito bem distribuída pelas camadas sociais.

Pois bem, logo em suas primeiras disposições, a portaria da besta (666) – se fosse assinada pelo menino que procura a dor da república[3], seria 333 (meio besta) –, de evidente inconstitucionalidade – o que há muito não é questão, uma vez que já não estamos em um Estado de Direito –, resgata a marca caracterizadora de qualquer estado autoritário[4]: um conceito aberto ao ponto de possibilitar que qualquer opositor do status quo – por ora, desde que estrangeiro – seja nele enquadrado, a partir de uns poucos sofismas. Nisso, inclusive, o minúsculo ministro e seus asseclas “espertos ao contrário” (viva Estamira[5]!) têm sido especialistas: independente dos fatos e suas provas, valem-se de sofismas pobres e convicções mal escritas, às vezes copiadas – bem como de uma mídia prostituída – para perseguir e punir os que se oponham à sua lei – porque a lei é deles e daqueles a quem servem, que estão acima dela e a manipulam segundo seus interesses e sua moral farisaica.

Referimo-nos à expressão pessoa perigosa, que contraria qualquer pretensão de certeza e segurança jurídica que devem orientar a elaboração de normas que possam determinar restrição a liberdades. Mas a abertura da porcaria, digo, portaria, não se restringe à expressão pessoa perigosa que a inaugura. Percebemos, no curso da normativa – que maltrata o português, como seu signatário[6] –, que, para ser considerada pessoa – estrangeira – perigosa, e ser sumariamente expulsa do país (art. 2º, §3º), basta a simples suspeita de práticas que se enquadrem em tipos abertos, como é o caso de terrorismo (art. 2º, I, da porcaria), deflagrada (a suspeita) por: I) difusão ou informação oficial em ação de cooperação internacional; II) lista de restrições exaradas por ordem judicial ou por compromisso assumido pela República Federativa do Brasil perante organismo internacional ou Estado estrangeiro; III) informação de inteligência proveniente de autoridade brasileira ou estrangeira; IV) investigação criminal em curso; e V) sentença penal condenatória – art. 2º, §1º.

Em português claro, mais claro que o da porcaria – talvez propositalmente confusa –, considerada a abertura de suas disposições, qualquer estrangeiro – por ora – pode se enquadrar no conceito de pessoa perigosa, bastando que assim o queiram certas autoridades. É simples assim: basta providenciar alguma suspeita, verdadeira ou falsa, e instaurar um inquérito ou, mesmo, arranjar uma informação de – suposta – inteligência para expulsar sumariamente qualquer estrangeiro que ande desagradando as bestas deste país.

Tem endereço certo, uma tal porcaria.

Mas, no país da piada pronta, em que uma portaria fascista leva o nº 666, em que as contradições parecem ser pressuposto de credibilidade, a expressão pessoa perigosa vem atrelada à prática de ato contrário aos princípios[7] e objetivos dispostos na Constituição Federal (arts. 1º e 2º da famigerada portaria). E, dentre os princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal, certamente ignorados em substância e sistematicidade pelo desalado batman e seus parceiros, merecem destaque – sem sequer adentrar os arts. 5º, 6º e 7º da CF, já suficientemente estuprados: I) a soberania; II) a cidadania; III) a dignidade da pessoa humana; IV) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V) o pluralismo político; VI) construir uma sociedade livre, justa e solidária; VII) garantir o desenvolvimento nacional; VIII) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IX) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; X) independência nacional; XI) prevalência dos direitos humanos; XII) autodeterminação dos povos; XIII) não-intervenção e XIV) igualdade entre os Estados.

Sendo esses alguns dos princípios e objetivos dispostos pela Constituição Federal, CONSIDERANDO a postura da besta-mor da nação e seus agentes na entrega de nossos recursos naturais e a subserviência aos EUA como violação à soberania e à independência nacionais (I e X); a crescente miséria, o retorno da fome e o aumento das desigualdades sociais como vilipêndio à cidadania e à dignidade humana (II, III e VIII); a esculhambação (palavra adequada aos tempos e ao vocabulário oficial corrente) dos direitos trabalhistas e previdenciários como afronta aos valores sociais do trabalho e ao objetivo de se construir uma sociedade livre, justa e solidária (IV e VI); as políticas que valorizam a importação em detrimento do fortalecimento da indústria nacional como obstáculo ao desenvolvimento nacional (VII); as perseguições ideológicas como atropelo ao pluralismo político (V); o racismo, a misoginia, a homofobia e todos os preconceitos regentes da nova desordem nacional como verdadeira profanação ao objetivo de promover o bem de todos, sem discriminação de qualquer natureza (IX e XI) e a postura do país, especialmente em relação à Venezuela, como aberta transgressão aos princípios que regem – ou deveriam reger – nossa política internacional, como a autodeterminação dos povos, a não-intervenção e a igualdade entre os Estados (XII, XIII e XIV), SÓ PODEMOS CONCLUIR que, nos termos da porcaria em análise, o capetão, as bestas e os meio bestas que o seguem são as pessoas mais perigosas que podem existir nestas terras, não havendo terroristas estrangeiros de qualquer espécie que sejam capazes de superá-los em potencial destrutivo.

Posto isso, como afirmados nacionalistas e patriotas que são, cidadãos de bem, cumpridores de normas – pelo menos assim se proclamam –, antes de se ocuparem de expulsar estrangeiros, TEMOS COMO VERDADEIRO DEVER CÍVICO do minúsculo ministro, de seu desprezível chefe e de toda hedionda horda que os acompanha deixar imediatamente o país, para o qual já não têm sido só pessoas perigosas, mas agentes de terrores efetivamente danosos.

Revogam-se todas as porcarias que disponham o contrário.


[1] Lembrando que morcego sem asas não passa de rato.

[2] Vale frisar que a XP, coincidentemente, trabalha com previdência…

[3] Embora se apresente como bom moço cristão, o menino investidor que procura a dor da república parece desconhecer Lucas 16:13, do qual se extrai que “nenhum servo pode devotar-se a dois senhores, pois odiará um e amará outro, ou dedicar-se-á a um e desprezará ao outro. Jamais podereis servir a Deus e a Mamon”. Se Mamon representa o dinheiro e não é possível servir a dois senhores, como bem atesta o evangelho, cremos que o menino que faz doer a república já escolheu seu mestre.

[4] Nosso minúsculo ministro, em provincianos delírios, deve pensar que é Schmitt.

[5] Para quem não conhece, vale assistir ao documentário Estamira: https://www.youtube.com/watch?v=IcUKQNj3HEg

[6] Como se infere da péssima redação do art. 2º da porcaria 666.

[7] Também sendo bastante impreciso dizer de princípios dispostos na Constituição Federal.

Previous post

A morte de Flaviosney

Next post

Manual prático de manipulação do ódio e da destruição