Crontos, cônicas e afins

Zé, o mais novo sobrinho do Tio Sam

Zé, o mais novo sobrinho do Tio Sam[1]

            José João da Silva – ou apenas Zé, para a maioria dos que o conheciam – era daqueles típicos brasileiros, o ilustre desconhecido, figurante no filme da história nacional. Tinha apenas o 2º grau e em sua carteira de trabalho constava auxiliar de escritório, mas era funcionário de confiança, um destes faz tudo de uma poderosa empresa de publicidade e propaganda especializada em promover produtos americanos no mercado brasileiro.

            Zé desfrutava de uma vida invejável à maioria dos compatriotas. Morava num subúrbio, em casa que no mês anterior se tornou própria, tinha telefone, máquina de lavar, microondas, DVD e até televisão de LCD. Tinha também uma van 2002, com a qual realizava alguns fretes e, nos feriados, transportava passageiros clandestinamente para reforçar o ordenado.

            Era casado com Rosa Maria, portanto, da Silva, morena para com a qual o Criador foi generoso, garantindo-lhe volumosos atributos, que, fugindo à regra, não obscureceram sua inteligência. Além do andar, que parecia ser cadenciado por uma música que só ela escutava, possuía um incisivo senso crítico, razão de muitas de suas brigas com o sonhador, muitas vezes piegas, Zé.

            Ainda não tinham filhos. Não por causa da Rosa, mas pelo Zé, que sempre bradava indignado quando Rosa Maria tocava no assunto:

– Que futuro espera um menino que tem um pai chamado Zé? Um filho meu é digno de um pai que se chame Washington ou, quem sabe, Wellington, para que, quando formos para a terra do Tio Sam – Zé ouvira essa expressão de um dos diretores da empresa na qual trabalhava, ficando extasiado –, ele possa ser respeitado!

            Rosa gargalhava, zombava dos devaneios de seu marido, mal sabendo que essas idéias já tomavam formas e até cores em sua cabeça.

            Há muito, Zé já tramava sua ida para os EUA. Primeiro, é claro, mudaria seu nome para Washington Wellington da Silva (com esses dois primeiros nomes o “da Silva” já nem o incomodava tanto). Arrumaria um visto de turista, o que seria fácil de conseguir, descolaria um emprego, permanecendo na clandestinidade até conseguir a cidadania. Não poderia ser tão difícil. Lembrou-se até de um primo distante, o primo Clark da Silva (talvez ele fosse americano, com esse belo nome), mas procurou informar-se e soube que sua tia-avó lhe dera esse nome por ser fã de um ator que trabalhou no filme “E O Vento Levou”. Então, já estabelecido e cheio de dólares, voltaria e levaria consigo a Rosa (Rosemary) e o filho(a).

Quanto ao emprego, não se importava em iniciar por baixo. Afinal, estava acostumado ao trabalho pesado. Começaria como office-boy de uma empresa de marketing e iria subindo de cargo, até juntar alguns milhares de dólares e abrir sua própria empresa. Experiência não lhe faltaria.

            Tudo foi providenciado, o passaporte com visto de turista, a passagem de ida, que para desgosto de Rosemary, desculpem, Rosa Maria, foi comprada com o dinheiro destinado à troca da velha van por uma 0 Km, e o filho, que, já sabia, seria a man de nome Jerry John, é claro, da Silva. Só o nome do Zé não pôde ser mudado, fato que quase lhe custou a liberdade, já que, ante a negativa, xingou o Juiz responsável pela ação com um palavrão que aprendera no cursinho de inglês.

            Nem tudo é perfeito e a viagem estava marcada para um dia antes do nascimento do little Jerry.

            No saguão do aeroporto estavam todos os colegas da firma, os quais desejavam good luck e diziam que iriam miss him so much.

            Embarcou e durante a viagem foi vislumbrando seu futuro. Placas de neon com as inscrições J.J.Corporation (homenagem a seu filho Jerry John) flutuavam em seus pensamentos juntamente com elogios na revista Time, “The Businessman of the Year”.

            Desceu em Nova York e, em pensamento, louvou aos céus:

Thank You, God!

            Passou dois meses procurando e, por fim, achou um emprego no Sam’s Bar. Uma ratoeira onde ele estaria encarregado de lavar os banheiros, tão incrivelmente sujos que Jose, como era chamado em sotaque espanhol, não acreditava ao ver tantas e tamanhas baratas e ratos passeando pelo local. Não conseguia ver possibilidade real de sobrevivência de qualquer ser vivente naquele fétido ambiente, recheado de dejetos intestinais de americanos devoradores de enlatados.

            Findara seu último dia de trabalho no Sam’s. Estava decidido a voltar para o Brasil, para os braços – peitos, coxas e bunda – de sua Rosa, para seu filho (como ele estaria?) o mais rápido possível. Providenciaria isso no dia seguinte. Isso!

            Foram dois meses lavando latrinas de americanos nojentos. Mancava, pois um rato, que mais parecia um cachorro, havia mordido seu pé. O visto chegava ao fim, assim como seu dinheiro, que só dava para o pão com carne – nada de hamburger – e a passagem de avião.

            Já era noite. Comeu seu lanche e foi caminhando para o albergue no qual dormia. Ao atravessar um gueto, avistou um grupo de americanos gordos, cheios de tatuagens. Estranhou. Sem saber o porquê, notou uma ligação entre aquelas figuras e as coisas que ele limpava no banheiro do Sam’s. Algo visceral, como o que une o autor à obra.

            Espantando suas reflexões, continuou em marcha, sendo interrompido por um peso indescritível que lhe caía sobre a nuca, que logo descobriu partir de um bastão empunhado por um careca. A seguir, vieram um soco e um pontapé.

Já quase desmaiado, pôde ver uma bunda descomunalmente grande (bem maior que a da Rosa) se acomodando em sua cabeça, que ficou parecida com seu antigo local de trabalho. Então, o que parecia o líder do grupo tirou algo que brilhava muito da jaqueta e fez mira. Sem entender muito bem o que acontecia, ouviu um estampido.

            Acordou empapado de suor com a Rosa ao seu lado, recolhendo os cacos de um vaso que deixou cair enquanto limpava o quarto.

            Descobriu que era domingo, meio-dia. Ligou para o celular da agente que lhe vendera a passagem e mandou cancelar. Deu um longo abraço e repetiu o nome de Rosa várias vezes, para depois dizer, deixando sua esposa ainda mais confusa:

            – Nosso menino vai se chamar José João da Silva Filho. Nada de Júnior, e estamos conversados.


[1] Texto escrito em 2000. Mas, hoje, Zé bem poderia ser um embaixador…

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