Relicário

O grito do porco

O grito do porco

Andrey Régis de Melo

Há quase três anos atuo exclusivamente no tribunal do júri, em Canoas, portanto, as teses defensivas, as dores d’alma, os dramas da vida humana estão em derredor do art. 121 do Código Penal. É a morte por bala e faca que habita o cotidiano do tribunal do povo. No entanto, houve um tempo em que eu também atuava na defesa dos acusados de porte ilegal de arma branca, lá nos rincões interioranos. Na minha peça defensiva, estampava no preâmbulo uma poesia de Dom Jayme Caetano, rogava pela atipicidade da conduta do réu, afinal, a faca acompanha a história do gaúcho.

Acho que foi a carneadeira que não matou o porco na primeira estocada que me fez respeitar os xírus que andavam com a prateada na cintura. O simpático porco que habitava o fundo do pátio morreu na segunda estocada. Sofreu. Gritou. Saboreamos o torresmo, a banha e as nobres peças para a feijoada. Nos bolichos missioneiros, a lâmina fria no desatino pérfuro-cortante dilacerava as camadas de tecido, a gordura pingando no barro vermelho. O olhar embrutecido no choque hipovolêmico. Os livores cadavéricos. A partida. O sepulcro. O estrago é assustador. O gritedo da viúva. O órfão silêncio. 

Quando o pai chegava em casa, depois de horas no baralho, deixava o trêsoitão sobre a geladeira. Ele não tinha muita preocupação com o ferro, portou o cano desde os 10 anos. Cuidava de Dom Plínio, o tropeiro; também na carpeta missioneira. Confesso. Subi no banco e coloquei o revólver na cintura. Era pesado. Eu tinha 10 anos. É a sina. Mas o medo era do aço cortante. Não me assombrava com as armas de fogo. Na caminhada terrena, atirei com revólver, espingarda, pistola e fuzil. O espanto maior aconteceu quando abordei um xíru na Av. Sagrada Família, na capital das Missões. Era do Alegrete. Disse que não se entregava pra milico. Portava a fúnebre prateada. Respeitosamente, proseamos. 

No turno da tarde, recebi um ‘pdf’ ofertando um fuzil 5.56mm. Uma bela arma de fogo. Carregador com capacidade para trinta cartuchos. Coisa linda o zunido de bala na briga de trânsito. A turumbamba de bala no filho do vizinho que foi buscar a bola. O guri brincando com o belo metal. O setor de vendas da conhecida fábrica brasileira de armas é ligeiro. Confesso que tenho mais medo de faca do que das armas de fogo. Porem, não vejo como solução para os nossos problemas de segurança pública a simplista oferta de armas para a população. Acredito que a melhor munição está nos livros, nas escolas e nas universidades.

O porco, eu e o presidente temos medo da estocada da faca carneadeira. Morrer sentindo o gélido aço nas entranhas. Tombar segurando as tripas. Fezes e bílis ‘hermanadas’ na derradeira marcha fúnebre. Tenho medo da hedionda faca. Criminalizem o porte da arma branca e liberem os fuzis e as pistolas .45. Punam duramente o sanguinário amolador. No entanto, se fores adquirir o fuzil, recomendo que, antes de parcelar no cartão, convide a família para ouvir uma festiva rajada na hora do jantar. Não se importe com os buracos na parede. Talvez todos escutem o esperançoso grito do porco pela segunda facada. A primeira levamos na primavera de 2018.

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