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De pais reais e a decadência dos mitos (texto pós-carnaval de 2019)

De pais reais e a decadência dos mitos (texto pós-carnaval de 2019)

Em texto anterior – “De pais fortes e servidão voluntária” –, abordamos a tendência do sujeito a abrir mão de sua liberdade enquanto clama pela proteção de um pai forte, no qual projeta super poderes capazes de resguardar seus filhos amados de toda sorte de perigos – reais ou imaginários. Tratamos, ainda, da condição infantilizada que assumem aqueles incapazes de autonomia, bem como do obstáculo à democracia que essa submissão a figuras tirânicas representa, destacando o quanto essa forma de alienação apassivada ainda se faz presente em tudo isso daí que constitui nossa (sur)realidade contemporânea,  que se afirma apesar de todas as lições da história quanto às tragédias causadas por projetos que conjugam fanatismo, medo, ódio e ignorância orgulhosa de si.

Já concluindo o texto anterior, destacamos que o desamparo é inerente à condição humana e, portanto, não serão fantasias de qualquer ordem que o remediarão. Ele é inevitável e é deste ponto que retomamos nossas considerações, passando a analisar o quão duro é o choque com a realidade quando vão caindo uma a uma as ilusões criadas em torno do tão aclamado pai forte. Aliás, muitas vezes a realidade é recusada, permanecendo os crentes em negação por bastante tempo, tamanha a decepção diante da visão devastadora da degeneração do pai forte em pai real.

E, certamente, não é pouca a frustração experimentada nesse momento crucial.

Afinal, são nossos próprios ideais que sofrem um duro golpe quando nos deparamos com a fragilidade de nossos ídolos, sendo a decepção experimentada inversamente proporcional às ilusões investidas na criação de um personagem que se revela oco. Difícil assimilar que, esvaziada a ficção, aquele que se supôs um herói não passa de uma casca vazia, um ser desprezível e patético, ainda que não vista a cueca por cima da calça.

Difícil admitir que aquele homem que prometia voar sequer consegue dar pulos de meio metro e que, ao invés de possuir uma visão de raio x, é acometido de uma cegueira que lhe impede de identificar problemas que estão a um palmo de seu nariz. Aliás, é tão perdido no tempo e no espaço que recorre a astrólogos pedintes para orientá-lo.

Mas a situação pode ser ainda pior e a desilusão se misturar com alguma culpa e vergonha.  Isso costuma acontecer quando nos damos conta de que, como já dito, nossos mitos nada mais são que nossa própria imagem idealizada. Assim, quando o mito se revela um grande minto, são as mentiras que contamos para nós mesmos que emergem. E a possibilidade de inversão em fantasia do estado de coisas propiciada pelo Carnaval é, ironicamente, uma ótima oportunidade para que caiam as máscaras hipócritas daqueles que passam o ano desempenhando o papel de cidadãos de bem e, frente à irreverência dos foliões, mostrem a verdadeira face de seus ódios, violências, intolerâncias e desumanidades.

Invejosos da alegre fantasia de uns, os tristes fariseus terminam por se revoltar e rasgar as túnicas que cobrem o sepulcro caiado de seus corpos. Ressentidos da beleza que não alcançam, tentam impor ao mundo as obscenidades que atraem seu olhar perverso, habituado à tortura, avesso ao feminino, sedento de sangue e guerra.

Vamos, então, presenciando o momento em que muitos (ex?)crentes passam a se assustar com a imagem que veem refletida pelo espelho de seu mi(n)to e, ainda que em silêncio, já começam a se questionar se tanto ódio e violência não terminarão se voltando contra eles próprios, o pai escravizando os filhos devotados para devorá-los antes que possam envelhecer, um futuro de misérias que deverão ser partilhadas justamente pelos mais pobres e que é propagandeado sob o nome de “reformas” as quais nos colocariam na vanguarda… do retrocesso.

O mito, que põe todos abaixo de si e se coloca acima de tudo, anda nu e a visão que propicia é de uma feiura única, que combina o que há de mais trágico com o que há de mais patético neste circo de horrores distópico que se tornou o Brasil.   

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