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De pais fortes e servidão voluntária (texto pré-carnaval de 2019)

De pais fortes e servidão voluntária (texto pré-carnaval de 2019)

A figura paterna é, sem dúvida, essencial para a constituição de sujeitos aptos a integrarem um corpo social, capazes de se conterem diante de limites postos em nome da coexistência de liberdades e de contribuírem para o bem-estar da comunidade que os antecede e recebe. É do Pai, portanto, como ensina a psicanálise, o dever de bem transmitir à sua descendência a Lei que seja eficaz em assegurar o bom prosseguimento da marcha civilizatória.

Referimo-nos a um processo em que a função paterna desponta como verdadeiro pressuposto de humanização, na medida em que, a partir da imposição primeira da Lei por um outro, o Pai (heteronomia), o sujeito adquire o instrumental simbólico necessário para emancipar-se e alcançar uma condição crítica que o torne capaz de se autoimpor as leis que possam conciliar sua subjetividade ao corpo social que integra (autonomia).

Temos, então, que o Pai é fundamental justamente para que consigamos dele nos libertar e nos conduzir segundo nossas escolhas; fundamental como resistência a ser superada para que nos tornemos adultos livres, responsáveis pelo nosso destino. E, sendo impossível pensar o sujeito apartado da sociedade que integra, sendo igualmente impensáveis sociedade e sujeito que não se enlacem politicamente, podemos concluir que esse processo de emancipação subjetiva é esperado também em termos sociais e políticos. Daí se poder afirmar que uma democracia – regime político amadurecido – pressupõe cidadãos autônomos, livres para escolher e responder por suas escolhas. Ou seja, uma democracia pressupõe sujeitos que tenham sido capazes de internalizar e superar o Pai, tornando-se adultos; cidadãos críticos o suficiente para escolherem ativamente seus rumos e os da sociedade que constituem, e não simplesmente sujeitos que, tais quais crianças, se dobram a fantasmas e toda sorte de medos ao ponto de abdicar da própria liberdade, servindo passiva e voluntariamente a um pai que se disponha a protegê-los em troca de obediência cega, surda e muda.

A autonomia e a condição adulta têm seu preço, que se calcula a partir de uma equação complexa cuja solução exige capacidade crítica e que envolve, a um só tempo, perda e aquisição de liberdade, renúncia e afirmação de si mesmo. Como já disse Dany-Robert Dufour, autônomo é aquele capaz de não renunciar a seu desejo (Lacan) ao mesmo tempo em que se recusa a instrumentalizar o outro (Kant). Isso não é pouco e requer, acima de tudo, vontade de liberdade e coragem de responsabilidade.

Diante de tão grandiosa missão, portanto, são poucos os sujeitos e as sociedades que se mostram inclinados à liberdade e à autonomia. O mundo infantil da pura submissão é mais confortável, de modo que, ao real de uma liberdade responsável – que se traduz em autonomia –, se costuma preferir uma servidão voluntária apoiada em precária mitologia, numa constelação de heróis e vilões improváveis na exata medida da incapacidade crítica de quem os engendra, mas que terminam por justificar a convocação de um pai forte para nos proteger dos fantasmas que acolhemos para escoar nossos medos, ódios, invejas e violências, que nada mais são do que o subproduto de nossa incapacidade à liberdade.

Pura ilusão, uma vez que não há pai que possa nos livrar do desamparo que é inerente à condição humana e que, um dia, há de nos cobrar resposta ativa e responsável. Até lá, resta o encolhimento a um estado de infantil submissão em meio a uma espécie de alucinação orwelliana compartilhada, na qual, deixados de lado os fatos e a verdade, se decide arbitrariamente que “guerra é paz; liberdade é escravidão; ignorância é força”.

Se tudo der errado mais uma vez, oxalá ainda tenhamos as duas saídas de sempre: nos tornarmos adultos ou chamar o papai. Temos que confessar, por todo o exposto, que não surpreenderiam novos apelos ao pai. Afinal, a repetição trágica é o destino certo daqueles que não aprendem com a história. E nos deparamos todo dia com isso daí…

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