(des)levezas

Carta a Raimundo Inácio

Bananeiras, outono de 1920.

Estimado companheiro Raimundo Inácio,

Escrevemos para abraçá-lo com palavras. Se o abraço real ainda não é possível, que possamos enlaçá-lo e aquecê-lo com ternas palavras, sempre insuficientes para comunicar quanta falta nos faz neste deserto que se tornou nossa Bananeiras.
É do oásis de suas ideias e da grandeza de seu amor pelos oprimidos que sentimos saudades.
Os homens-deserto tomaram o poder e seguem contaminando com sua aridez toda e qualquer vida ou beleza que ameacem suas almas mortas. Pretendem desertificar nossas florestas e corações.
Sabe, companheiro… os homens-deserto invejam a vida e o amor. São ressentidos. Não querem que os pobres estudem, viajem ou tenham moradia digna, porque assim ameaçam sua situação no mundo. Aliás, são extremamente inseguros quanto à sua situação, qualquer sopro carnavalesco sendo suficiente para confundir suas frágeis orientações. Deve ser por isso que, para se convencerem de sua condição, não hesitam em se valer da violência, real ou simbólica, empregando manobras escusas e as mentiras mais vis para ganhar sua guerra em que os fins justificam os meios.
Esses homens-deserto dependem da miséria para se afirmarem melhores, tamanha a pobreza de espírito que os consome por dentro. Têm verdadeira tara pelo poder com que oprimem os mais fracos e diante do qual docilmente se submetem aos mais fortes, o que bem revela a lógica covarde que os mobiliza.
Os homens de areia adoram as armas e odeiam os livros, companheiro Raimundo… Não fazem ideia do quão vasto é o mundo, Raimundo, e de quanta poesia nele caberia, não fossem suas almas cinzentas. Chamam de arrogantes os que estudam e têm o que dizer, mas não percebem a própria prepotência e soberba quando falam sobre tudo de que nada sabem. O plano dos homens-deserto é nivelar o mundo segundo suas mediocridades: mediocridade intelectual, mediocridade afetiva, mediocridade humana.
Ao te prenderem, companheiro Mundão, esperavam calar sua história. Fantasiavam diminuir o seu nome e te tornar um Raimudo. A falta de reflexão dessas criaturas desérticas os faz desconhecer que nada melhor que obstáculos para que a liberdade de pensamento se manifeste com toda sua potência. Orgulhosos de sua ignorância, os homens-deserto não têm a dimensão da armadilha histórica que preparam para si mesmos.
Pobres de virtudes, os homens de areia precisam de bodes expiatórios e inimigos que possam confirmar pelo avesso sua bondade de areia; precisam de novos cristos para crucificarem enquanto se afirmam puros. Fariseus contemporâneos que se autoproclamam cristãos sem nada conhecerem das lições de empatia, tolerância e amor que traz o Novo Testamento.
Sua devoção é pelo ódio, pela violência, pela guerra, pela intolerância, e sua missa negra parece ter por rito principal a perversão coletiva da oração de São Francisco, transformando-a numa espécie de ode ao obscurantismo, pois se esforçam em levar ódio onde houver amor, levar ofensa onde possa ter lugar o perdão, a discórdia onde haja união, plantando o erro onde predomina a verdade, disseminando o desespero onde havia esperança, fazendo preponderar as trevas e a tristeza onde quer que se anunciem a luz e a alegria.
Cativos que são, meu caro Mundo, esses homens-deserto anseiam por entregar sua liberdade ao primeiro que a requisite em troca de um pouco de segurança. São mi(n)tólatras sempre saudosos de um Pai forte que possa castrá-los.
Não percebem que pelas mãos de um irmão generoso caminhos difíceis podem ser mais suaves, que a solidariedade fraterna é mais eficaz que a violência autoritária.
E é para juntos, de mãos dadas, nos conduzirmos por esse caminho rumo à igualdade, à liberdade e à justiça que aguardamos o irmão e companheiro de braços e abraços abertos, cientes de que o bom combate continua e que o percurso ainda é longo neste nosso mundo, vasto mundo, que também é seu, Raimundo.
Afetuosamente,

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