(des)levezas

Seres à beira do abismo

Seres à beira do abismo[1]

“Já perscrutamos bastante as profundezas dessa consciência e é chegado o momento de continuarmos a examiná-la. Não o fazemos sem emoção ou estremecimento. Nada existe mais terrível que esse tipo de contemplação. Os olhos do espírito não podem encontrar em nenhum lugar nada mais ofuscante, nada mais tenebroso que o homem; não poderão fixar-se em nada mais temível, mais complicado, mais misterioso e mais infinito. Existe uma coisa que é maior que o mar: o céu. Existe um espetáculo maior que o céu: é o interior de uma alma”.

Victor Hugo, Os Miseráveis

A miséria humana sempre foi tema que me interessou e, investigando este interesse, pude chegar à conclusão de que vejo algo de belo em toda essa sujeira que nos é inerente. Posso ainda afirmar que não estou só, pois, se estivesse, algumas fotos do Sebastião Salgado não teriam a importância e o reconhecimento que têm, os livros do Rubem Fonseca não venderiam tanto e o Dostoiévski não teria sido o Dostoiévski. Aliás, talvez até me arrisque a dizer que essa miséria permite que me sinta menos só.

Ou mais só, em tempos de império de uma maioria anestesiada pelo consumo, fechada num narcisismo que cega para tudo que é outro, que seja diferente das tetas do mercado… Mas, postas de lado as constatações psicossociológicas, voltemos ao nosso lindo e miserável desespero.

A miséria denuncia uma impossibilidade, a nossa impotência frente a uma realidade da qual muitas vezes não participamos, mas pela qual não raro sofremos; faz emergir nossa incapacidade de responder ao outro ou de resolver para o outro a situação que o consome e destrói, lembrando-nos, a todo momento, de nossa condição carnalmente finita.

Que retornaremos ao pó não há dúvidas e, sendo este o termo futuro que mais nos identifica, unindo-nos na angústia, talvez seja a partir dele que se possa melhor apreciar a estética de nossa podridão.

Trocando em miúdos, penso que a miséria tem algo de belo porque desperta a compaixão, este co-sentimento que nos toca fundo. Revela nossa solidão estrutural, mas resgata seu lado estruturante ao fazer-nos lembrar que somos todos seres à beira de um abismo, capazes dos mais terríveis, mas também dos mais sublimes atos.

É a compaixão que nos identifica ao mendigo, à prostituta velha e gorda, à criança que chora de fome, ao assassino… E, como num espelho mágico, permite-nos dividir com os mais desesperados miseráveis um ponto comum: o desamparo de nos sabermos humanos. No extremo oposto, talvez também seja esta identificação o sentimento-base de nosso êxtase ao ouvirmos uma bela música, ler uma poesia ou uma fotografia de beleza que imediatamente nos toca e envolve num empuxo.

O belo e o miserável acabam sendo as duas faces de uma mesma moeda, as quais vezes ou outra acabam se confundindo, como se permitissem o impossível encontro da noite com o dia ou que o céu tocasse as regiões abissais.

E nós, a moeda de metal corrosível, seguimos sós, nos equilibrando na corda bamba de uma liberdade que não escolhemos, mas pela qual somos convocados a responder. É de se cogitar se não foi por questões semelhantes que Kierkegaard definiu a angústia como “a vertigem da liberdade”.


[1] Texto escrito em 2006, publicado na Revista “Os Impublicáveis”, número 0.

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