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Donos do poder, manipuladores de sentidos e usurpadores de realidade: o Brasil através do espelho

Donos do poder, manipuladores de sentidos e usurpadores de realidade: o Brasil através do espelho[1]

Nada mais humano que a palavra, justamente o fio com que nos orientamos no mundo ao tecermos uma realidade apartada da natureza. Noutros termos, se a consciência de nossa existência nos libertou de um eterno presente e de uma integração não mediada a um absoluto real, é pela palavra que ainda podemos nos conectar precariamente ao mundo, nos sabermos existentes enquanto nos comunicamos e, a partir de um trabalho de cultura, representarmos o universo que comungamos, na impossibilidade de presentá-lo.

Todavia, trata-se de uma conexão precária, até mesmo porque a palavra não se confunde com a coisa a qual re-presenta, de modo que, ao mesmo tempo em que a indica – e dela se aproxima –, atesta um afastamento em relação a ela – a coisa representada.  E não se diz de qualquer distância, mas de uma distância intransponível, reveladora de uma considerável abertura significante a exigir um trabalho interpretativo diante de cada palavra, o que se por um lado dá margem a construções metafóricas e poéticas, por outro enseja toda sorte de mal-entendidos.

Surge, então, uma questão crucial: afirmar que cada palavra é portadora de considerável abertura significante não equivale a dizer que se faz aberta a toda e qualquer interpretação, que está à livre disposição daquele que a maneja e interpreta. Tem-se, aí, uma ressalva de fundamental importância, uma vez que, não havendo limite à interpretação das palavras, é a própria realidade humana que se vê em risco – e disso bem sabiam George Orwell e Aldous Huxley…

Isso porque, uma vez que não está imediatamente conectado ao mundo e não é plenamente integrado à natureza – o que nos permitiria simplesmente existir, sem saber que somos e estamos –, para habitá-lo, o ser humano tem de compreendê-lo e atribuir-lhe sentidos, criando para si um universo próprio que lhe garanta realidade, ao que se chama de cultura ou civilização, e diz de um processo que se funda e desenvolve no simbólico, na palavra. Ou seja, é a palavra – a representar códigos complexos de comunicação – que confere alguma realidade à existência humana, por remeter a referenciais comuns e, em certa medida, objetivos; verdadeiros limites compartilhados os quais possibilitam que nos reconheçamos uns aos outros e possamos, assim, confirmar nossa realidade, enquanto comungamos de uma mesma humanidade, igualmente submetidos ao simbólico. Tal construção remete-nos à síntese magistral de Hannah Arendt, segundo a qual a “presença de outros que vêem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos.”[2]

Clara, portanto, a necessidade de se investir na preservação dos limites de interpretação das palavras, sob pena de, perdendo-os, também perdermos a nossa já precária realidade. E é justamente essa a ameaça que nos acossa nos últimos anos, corroendo, especialmente, nosso Direito. Afinal, o que é o Direito senão palavra, de modo que a deterioração da palavra, dentre outros efeitos deletérios, é necessariamente determinante à degradação do Direito.

Daí porque experimentamos uma espécie de surrealidade à brasileira em matéria de Direito, pouco restando que nos autorize a dizer que contamos hoje com um ordenamento jurídico, uma vez que há muito já deixaram a cena noções fundamentais à realização de tal conceito, como são as de coerência e unidade. E esse – surreal – estado de coisas tem causa certa: o progressivo esgarçamento dos limites de interpretação de nossas palavras-leis que culminaram em um golpe fatal à sua fonte de sentido que é – ou deveria ser – a Constituição, representado no impedimento da última presidente da república eleita, destituída de seu cargo por atos apressadamente convertidos em crime, os quais inclusive teriam sido praticados por diversos de seus julgadores, muitos deles suspeitos ou acusados de desvios bem mais graves e evidentes que aquele que lhe foi atribuído.

Uma tão grave ruptura significante tem seu preço e, de lá para cá, assiste-se ao esvaziamento progressivo da Constituição em sua função mais básica, que é a de limitação ao poder, fundamento de qualquer Estado que se pretenda “de Direito”. Cada vez mais, portanto, a interpretação da lei se afasta dos limites objetivos da palavra escrita tornada norma e passa a depender da vontade de quem manda. À medida que caem os limites, emergem os abusos e a mediocridade dos que não respeitam as regras do jogo porque detêm o poder, de modo que garantias maturadas ao longo de milênios de civilização passam a ser interpretadas como privilégios de bandidos. Caem a liberdade, a presunção de inocência e o devido processo legal, numa alquimia às avessas em que a veracidade de delações passa a ser presumida, enquanto as prisões cautelares se convertem em meio de obtenção de confissões – ou delações. A exceção traveste-se de regra e a perversão emerge como referencial hermenêutico que pode ser resumido na seguinte máxima, de livre apropriação por cada um que se entenda na condição de mandar: “eu sei que a Constituição não autoriza, mas mesmo assim… o farei pelo clamor das ruas, em nome da verdade real, em defesa dos cidadãos de bem, porque não gosto de advogados, ou em nome de qualquer outro motivo que possa apoiar minha vontade.”[3]

O preço disso: vivermos em uma sociedade marcada pela violência em todos os âmbitos, do pessoal ao institucional, na qual impera a lei do mais forte, já que preterimos as regras do jogo. Uma sociedade em que o abuso passa a ser a tônica inclusive dos processos de elaboração, interpretação e aplicação da lei; na qual, por fim, a palavra perde o significado que une para se tornar instrumento de exclusão nas mãos dos donos do poder, que manipulam seus sentidos e, dessa forma, usurpam nossa realidade.

Assim, enquanto esperamos a candidatura de Humpty Dumpty[4] à próxima eleição presidencial, resta-nos observar que a guerra de todos contra todos jamais será interessante, ainda que por razões egoístas, na medida em que sempre haverá alguém mais forte que nós, seja pelo cargo que ocupa, seja pela arma que nos aponta (disso já sabia Hobbes…). Além disso, a história nos mostra que, em muitos momentos, aqueles que se pensavam donos do poder nada mais eram que instrumentos nas mãos de seus verdadeiros donos, os quais não tardaram a excluí-los do jogo no exato momento em que perderam a utilidade ao fim do processo de legitimação de uma determinada tirania. Diante disso, como vivemos de repetições, ao nos percebermos imersos em um contexto de ruptura e extremismo, seria de se esperar que olhássemos para o passado a fim de, no mínimo, nos questionarmos se não estamos iniciando outro ciclo de totalitarismo e autodestruição, não mais conduzidos por bandas marciais, mas pelo som estridente de seletivas caçarolas gourmet.


[1] Texto escrito no segundo semestre de 2016.

[2] ARENDT, Hannah. A condição humana. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 61

[3] Livre apropriação da conhecida frase de Octave Manonni, pela qual resume a perversão: “eu sei, mas mesmo assim…”

[4] Em notória passagem de Alice através do espelho, de Lewis Carroll, Humpty Dumpty disse a Alice:

“Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty num tom bastante desdenhoso, “ela significa exatamente o que quero que signifique: nem mais nem menos”.

“A questão é”, disse Alice, “se pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.”

“A questão”, disse Humpty Dumpty, “é saber quem vai mandar – só isto.” (CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 245).

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