Robert de Andrade

Há algo estranho no céu de Brasília

brasilia1À noite, na calçada em frente ao Hotel, acendo um cigarro. Aqui não se pode fumar em nenhum lugar, nem no quarto. A área do fumante é a rua. Uma moça muito magra, maltrapilha e provavelmente viciada em crack se aproxima e me pede um cigarro. Depois de entregar-lhe o pito, ofereço o fogo. Ela recusa, observa o cigarro, aperta, gira para um lado e para o outro, me olha nos olhos sem muita convicção e pergunta: “isso é cigarro mesmo?”

Em Brasília, ninguém confia em ninguém, mas os brasilienses tentam contornar essas generalidades afirmando que a melhor maneira de conhecer a verdadeira cidade é passando um fim de semana, pois os forasteiros, aqueles que “queimam o filme do DF”, só ficam aqui durante a semana.

Bem antes disso, às 9:30 da manhã, pela janela do avião, avistei o Planalto Central coberto por uma camada de poeira turva e ouriçada. O sol castiga a planície e quem está sobre ela. Seguimos do aeroporto direto para a Asa Sul, experimentando o trânsito truncado, mais pela má vontade dos motoristas que pelo excesso de carros.

A viagem foi a trabalho e, como sempre, seria corrida, sem pausa para turismo. Mas seria uma lástima vir à capital brasileira em um momento tão histórico e trágico e não visitar o palco principal, fotografar as pegadas dos algozes e marcas da resistência que até o momento pareciam não existir. Contudo, eu ainda poderia me entreter com os embates entre dois dos companheiros de viagem, um socialista e um liberal. Ambos firmes em suas posições, afinal à direita estava o empresário e à esquerda, o professor de história.

Éramos cinco e creio que todos sabiam que a minha posição política é esquerdista, mas venho me mantendo à distância de pontos de vista diferentes do meu. Antes da duvidosa deposição da presidenta Dilma, eu estava aberto ao diálogo e no meu Facebook desfilavam postagem de amigos de direita, de esquerda, extremistas, libertários, ultraconservadores e quem mais quisesse.

Confirmado o golpe, deixei de seguir todos os que têm posições diferentes da minha, afinal a diversidade política só me é interessante na democracia. Apesar disso, queria acompanhar os fatos de perto e, se preciso, ir à luta.

O dia seguiu ameno, sem protestos, sem revoluções ou revoltas. Não, o mundo não era assim o tempo todo, querer encontrar tudo o que se espera de um lugar em um só dia, é só vício do olhar.

Passada a primeira apatia, comecei a flanar nos breves intervalos que tive durante o dia, deixando de observar o óbvio que só apresentava uma cidade silenciosa e indiferente ao atual cenário. Os moradores de rua começaram a aparecer, não que tivessem hora marcada, mas já não me interessam os prédios e outras construções.

Os nomes dos lugares atiçavam a minha memória musical. A Asa Norte é o lugar que João do Santo Cristo frequentava na melhor fase de sua saga em Faroeste Caboclo. O Eixão é aquele cuja travessia era mais segura sob a proteção de Nossa Senhora do Cerrado. Já o Shopping Iguatemi ilustra bem o refrão de Até quando esperar, da Plebe Rude: “Com tanta riqueza por aí, onde é que está, cadê sua fração”.

No restaurante do shopping, o comunista e o capitalista se engalfinhavam cavalheirescamente. O mínimo necessário para todos ou o máximo apenas para os merecedores? Enquanto isso, nosso colega artista que estava no meio, nem na direita nem na esquerda, olhava compenetrado para um adorno imenso que pendia do teto. Uma armação de ferro retorcido e revestida por uma manta de palha, como um quadro de Kandinsky em 3D, mas para ele era o 14 Bis no olho de um furacão.
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A volta para o hotel foi tranquila, até porque colocamos chauvinista e fascista em carros separados. Prostitutas e travestis enfeitavam as esquinas com suas extravagâncias. Descobrimos, perto do hotel, um churrasquinho que seguramente faria tanto sucesso quanto o requintado restaurante em que estávamos, mas já era tarde e todos queriam descansar. Eu principalmente.

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Acordei às seis da manhã, de bermuda e chinelo, segui pelo Eixo Monumental rumo ao Congresso Nacional, passando pelo Complexo Cultural da República, Museu Nacional, Catedral Metropolitana e os prédios dos Ministérios. Apesar da beleza das construções, eu queria ver mais. No entanto, os espaços amplos, limpos e distantes do complexo arquitetônico pareciam tentar esconder as impressões humanas. Só olhando bem de perto.

As placas vistas de frente são apenas placas de trânsito, mas por trás tinham registradas as insatisfações dos que passaram por ali. O Complexo Cultural tornou-se ainda mais complexo quando um morador de rua decidiu dormir perto de uma parede pichada com a frase: “O povo é o poder”. Um vade mecum jogado na calçada dava o recado para quem sabe que seu título em latim significa “vem comigo” (para a rua).

A força de Brasília não está no Palácio do Planalto, mas sim nas ruas, ainda que se tente ofuscá-la. Quando se olha o horizonte tudo parece imparcial, as entrelinhas são as calçadas, onde se lê anúncios de garotas de programa, chamada para Greve Geral, Fora Cunha, Fora Temer, Lula 2018, Edir Macedo, vampiro brasileiro, tudo grafado no chão ou pilastras.

A cidade é árida e expansiva, o céu é marrom e opaco como se o conjunto tentasse pulverizar a realidade, esconder as mazelas que nos anos 1980 já eram cantadas pelas bandas de rock de meninos que cresceram aqui.

 

Texto e fotos: Robert de Andrade

Ilustrações: Sanzio Marden

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