Barroso da Costa

Pai, afasta de mim este fala-se!

Historicamente falando, há não muitos anos, brilhante intelectual – e músico – cantava “Pai, afasta de mim este cálice”[1], insurgindo-se contra a censura, a favor da liberdade de expressão. Porém, se então de tão gorda a porca não andava, hoje, de tão magra, ela voa!

 

Se de nada se podia falar antes, hoje de tudo se fala, mesmo que não haja o que dizer. A tão reclamada liberdade de expressão perverte-se em libertinagem, pornografia tagarela. Todos se sentem autorizados a dizer de tudo publicamente, como se quaisquer opiniões a respeito de qualquer coisa fossem dignas de se transformar em discursos. Questões privadas convertem-se em assuntos públicos, representando desperdício da luz e da oportunidade de expressão outrora tão escassas, que, por isso mesmo, deveriam ser reservadas ao que de fato interessa, mas que, contudo, permanece dissimulado.

 

Ou será que, no Brasil, os piores crimes são aqueles supostamente cometidos pelo casal Nardoni ou pelo goleiro Bruno? Seria o caso de uma reflexão geral sobre o que realmente importa: a Justiça ou a vingança invejosa, que se regozija na queda de alguém que tinha o que não merecia, enfim desmascarado, pego na onda de denuncismo que se presta a camuflar o que realmente importa. Caça às bruxas que se presta a manter tudo como sempre foi, ou será que a presença de sarneys, calheiros ou tiriricas não são assuntos muito mais preocupantes para o público brasileiro? Mas disso e deles ninguém quer dizer. Afinal, é assunto grave, que requer seriedade e aprofundamento de análise que remonta ao Brasil que foi – e permanece – colônia, antes de Portugal, hoje de outros…

 

Melhor ficar na superfície. Assim, respira-se melhor. Ao invés de fomentar o debate sobre a ausência de investimentos na educação básica e na saúde pública, melhor é instigar o clamor por vingança, o protesto popular e acrítico pela redução da maioridade penal, dentre outras medidas simplórias e cosméticas que são anunciadas e vendidas na mídia como eficazes para a solução de questões complexas como violência e criminalidade.

 

Em tempo de culto a uma transparência mentirosa, ao estilo Big Brother, melhor é espalhar câmeras que captam tudo, menos o essencial. Imagem é tudo, sede não é nada, já dizia a propaganda de refrigerante.

 

As palavras esvaziam-se diante da imagem, que, segundo entendimento corrente, dispensa reflexão ao valer mais que mil daquelas (palavras).

 

Nesse cenário, os espaços que deveriam destinar-se preferencialmente aos debates de interesse público[2] são cada vez mais destinados a tagarelices, fofocas, cabendo questionar se a bebida amarga não terminou substituída por doce e entorpecente veneno derramado no mesmo cálice de outrora. No final das contas, se a tagarelice não é mais que silêncio loquaz, vê-se que ser filho da outra não é melhor que ser filho da santa.

 

 

Barroso da Costa

 

 

 

 

 

[1] Refere-se a Chico Buarque e à música Cálice, composta em parceria com Gilberto Gil.

[2] Vide art. 221 da Constituição Federal.

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