Textos de colaboradores

Em um milhão

 
 
Estava  lá,  em pé. O  vento batia  gelado  em  seu  rosto  enquanto
os  dedos  do  pé  se  encolhiam  firmemente,  como  que  agarrando  o
parapeito.  Ah,  sim,  ele  estava  na  beira  do  parapeito,  no  topo  do
prédio.  Talvez  esse  detalhe  seja  importante  nessa  história.  Já  a
aparência  do  personagem  em  questão,  não.  Apenas  imagine  um
suicida,  qualquer  sugestão  física  que  surgir  em  sua  cabeça  será
adequada o suficiente.
Sempre  vira  essas  situações  na  televisão,  por  isso  estranhava
tanto  o  momento.  Não  havia  uma  multidão  lá  embaixo  olhando
para  cima,  muito  menos  equipes  de  TV  fazendo  sensacionalismo.
Helicópteros, nem pensar. Talvez, ponderou, seja por nunca ter sido
muito bom em chamar atenção. Depois de meia hora de  frustração,
começou a achar que seria melhor assim.
A  meia  hora  de  frustração  ocorreu  logo  depois  dos  quinze
minutos  de  emoção  empolgante  e  imediatamente  antes  das  duas
horas  de  incerteza. O  resultado  era  duas  horas  e  quarenta  e  cinco
minutos de vento no rosto e dedos do pé firmes no parapeito.
A  incerteza,  antes  tímida,  agora  tomava  conta  de  seu  corpo.
Começara como uma pequena e fraca voz, bem distante, nos confins
de  seu  subconsciente.  Aumentou  o  suficiente  para  se  tornar  uma
personificação  bastante  real  de  si mesmo,  sentada no  parapeito  ao seu  lado. 

 O  problema  é  que  a  materialização  de  seu  inconsciente
estava  tão  incerta quanto ele, e a única certeza que  teve nesse dia é
que não devia dar ouvidos a si mesmo.
Decidido  a  não  ouvir  mais  seus  próprios  pensamentos,
continuou  ali,  olhando  para  o  horizonte.  Mais  oito  minutos  de
inércia, que poderiam ser eternos – ou até quando batesse uma fome
– se nada tivesse acontecido.
Algo  aconteceu.  Alguém  aconteceu.  Da  porta  que  dava  acesso
ao  terraço,  surgiu o  zelador do prédio. Com  toda  calma do mundo,
colocou  algumas  ferramentas  ao  lado  da  portinhola  que  levava  à
casa de máquinas e, quando se virou para observar a vista em volta –
muito bonita por sinal, mas também não  irei descrevê-la. Pense em
uma vista bem bonita  -,  finalmente percebeu aquele homem ali, de
frente para o nada.
– Bela vista, não?
–  Ahn.  –  disse  o  homem  um  tanto  incerto  –  Sim,  me  lembra
muito [insira aqui algum lugar parecido com o que você imaginou]
– Com certeza! Eu também venho aqui de vez em quando, para
relaxar, sabe? A brisa é revigorante!
-Ahn.  Acredito  que  sim…  Mas  eu…  Sabe,  não  estava  muito
preocupado em apreciar a vista.
-Então está desperdiçando uma vista maravilhosa!
O  suicida  prestou mais  atenção  no  sujeito.  Também  não  vou
descrevê-lo,  mas  acredito  que  o  estereótipo  de  zelador  seja  mais
fácil de se  imaginar que o de suicida. O que ele estranhava não era sua

aparência, sem  importância para a história e muito menos para
ele, mas  o  fato  de  não  ter  percebido  o  que  estava  acontecendo  ali.
Sempre que vira  suicidas na TV, a  figura parada  em um parapeito,
olhando  para  o  horizonte,  geralmente  era  bastante  óbvia.  Agora,
ponderava  se  o  letreiro na  parte  de  baixo  da  tela,  escrito  em  caixa
alta, HOMEM  TENTA  SE  SUICIDAR, não ajudava na sensação de
obviedade.
–  Olha,  eu  não  sei  como  te  dizer  isso.  –  sentiu-se,  para  sua
surpresa, constrangido – Mas eu estou aqui para me jogar.
–  Jogar-se?  Essa  é  alguma  gíria?  Que  os  jovens  estão  falando
hoje em dia?
– Bem, na verdade, sim. Mas eu digo me jogar mesmo. Pular.
–  Ah,  sim,  entendo.  –  o  zelador  se  inclinou  para  o  parapeito,
olhou  para  baixo  e  pareceu  pensativo  por  um  instante  – Mas  não
devia  ficar  pulando  em  cima  do  parapeito.  Se  você  cair,  pode  ser
fatal.
– Pode ser? Mas, são doze andares!
–  Nunca  se  sabe.  Já  ouvi  casos  de  pessoas  que  sobreviveram
a  esse  tipo  de  queda.  Disseram  que  foi  um  milagre,  algo  que
aconteceria uma  vez  em  cada milhão de quedas ou  algo  assim. Vai
saber…
Ouvir outra pessoa ponderando sobre a queda tornou aquilo tão
real  que  suas  dúvidas  emergiram novamente  e  a materialização  de
seu inconsciente estava novamente ali, sentada no parapeito.
– Você de novo? Já disse que não converso mais com você!O zelador

olhou para onde o suicida olhava, mas não havia nada
lá,  nem  mesmo  um  pássaro  ou  uma  planta.  Embora  continuasse
sendo  meio  maluco  conversar  com  eles,  era  menos  estranho  que
aquilo.
– Senhor, o parapeito está sendo maldoso com você?
– O parap… Do que você está falando?
– Bem, o senhor parece bem incomodado com ele…
Durante alguns segundos, os dois ficaram se olhando, sem saber
o que pensar um do outro e de si mesmos. O rapaz olhou novamente
para  baixo  e  resolveu  que  qualquer  coisa  seria  melhor  que  ficar
parado ali.
– Olha, amigo, eu vim aqui para me matar. Cansei da minha vida
e quero dar um fim nela me jogando daqui. Então, se não for muito
incômodo, eu vou indo. Se quiser continuar essa agradável conversa,
me  procure  depois  que  você morrer  também.  –  virou-se  de  costas
para o zelador, que ainda estava pensativo, abriu os braços e olhou
novamente para baixo. O segundo de hesitação foi suficiente para ser
interrompido.
Novamente a porta se abriu. Desta vez, quem saiu para o terraço
foi  o  síndico  do  prédio.  Você  já  sabe  os  procedimentos,  imagine
alguém  que  se  pareça  um  síndico,  já  que  eu  não  vou  descrevê-lo
aqui. Ele parecia bastante nervoso, e suava bastante.
– Finalmente te encontrei! Os elevadores ainda estão parados, o
que você está fazendo aí?
– Desculpe, seu síndico. É que esse rapaz aqui está querendo se matar  e, 

como aqui  está  sempre vazio, achei  interessante bater um
papo para variar.
O  síndico,  ao  ouvir  isso,  ficou  empolgado.  Se  aproximou  do
suicida  tirando do  bolso um  celular,  apontando  a  câmera para  ele,
tentando achar o ângulo mais dramático.
–  Que  emocionante,  nunca  vi  ninguém  se matando!  E  vai  ser
aqui, no meu prédio, do qual sou síndico. Posso contar  isso para os
meus netos um dia!
– Ahn.  Por  favor,  eu  gostaria  que  você  não  filmasse.  Talvez  se
chamasse alguma emissora…
– Você está maluco meu jovem? Não sabe o tanto que pagariam
por  uma  filmagem  dessas?  Hoje  em  dia  o  que  faz  sucesso  são  as
câmeras  amadoras,  filmagens mal  focadas  e  com  pouca  resolução.
Deve  ter  algo  a  ver  com  a possibilidade de  interpretar  o borrão da
forma mais apropriada.
–  Pelo  menos  a  luz  aqui  está  fantástica.  Olha  esse  fundo!  –
acrescentou o zelador olhando para o horizonte.
– Pensei que você não quisesse que eu pule?
– Eu? Senhor,  eu  sou  só um  zelador, não quero que você  tome
uma decisão baseada no que eu penso. O máximo que faço é dizer ‘O
que o senhor decidir está bom’ e depois realizar meu trabalho.
– Mas isso não tem a ver com o trabalho!
– Aham – pigarreou o síndico, olhando para baixo – Você vai cair
ainda na área do prédio, sabe? Ele vai ter que limpar, não vai?
– O que o senhor decidir está bom.Começou a querer pular só para acabar

com aquela maluquice.
O  que  via  na  televisão,  quando  alguém  ameaçava  se matar,  eram
pessoas  gritando  ‘Não  faça  isso!’  ou  bombeiros  se  esgueirando
para  tentar pegar o sujeito. Na sua vez,  tudo estava diferente. Duas
pessoas estavam ali com ele, mas nenhuma delas lhe ajudava a pular
e muito menos a não pular. Só não decidia por  si mesmo porque a
materialização  do  seu  inconsciente  estava  ali  do  seu  lado,  olhando
para o céu e sorrindo. Ela também não tinha a mínima ideia do que
pensar e parecia bastante distraída.
Resolveu pular. Qualquer coisa, até a violenta morte em queda
livre, seria melhor que aquele silêncio constrangedor. Novamente foi
interrompido.
–  Todo  mundo  parado!  –  disse  a  figura  entrando  com  um
chute  forte na mesma porta pela qual  síndico  e  zelador  entraram  –
Ninguém se move ou eu atiro!
A aparência do novo personagem é ainda mais fácil de imaginar.
Basta  dizer  que  era  um  policial.  Basta  dizer  que  era  um  policial,
estava armado e nada tranquilo.
– Ei,  ei,  ei,  espera  aí!   O que  está  acontecendo  aqui?  – um dos
três falou.
– Eu que  faço  as perguntas. O que  vocês  estão  fazendo  aqui?  –
tentou falar firme para tomar controle da situação.
–  De  novo?  Será  que  não  é  óbvio?  Parapeito!  Pessoa  parada!
Olhar para o horizonte! OLHA, BRAÇOS ABERTOS!
No momento em que levantou os braços para provar seu ponto,

o policial usou o máximo de seus reflexos, insegurança e burrice para
atirar. Por sorte, o máximo de sua mira era patético, e o tiro passou
longe.
– Você está maluco? Atirando na gente? Nós não  fizemos nada!
-exaltou-se  ainda mais  o  suicida,  alvo  da  bala.  Pelo menos  achava
que havia sido o alvo, a direção dela foi tão aleatória que poderia ter
acertado até o próprio policial.
Sua  própria  iniciativa  de  atirar,  somado  ao  desespero  no
rosto  dos  outros  dois,  fez  com  que  o  policial  abaixasse  a  arma
instintivamente.
–  De-d-desculpe,  é  que  uma  moradora  ligou  para  a  polícia
denunciando algum tipo de baderna no terraço do prédio.
– Que baderna três pessoas poderiam estar fazendo? Aposto que
seu tiro fez mais barulho que nós três juntos.
–  Bem,  parece  que  foi  um  trote.  Vou  conversar  com  essa
moradora.
–  Espero  que  não  tente  atirar  nela  também.  Pode  acabar  nos
acertando aqui em cima.
– D-d-desculpem…  olha,  foi  só  um  acidente,  vamos  deixar  por
isso mesmo.
–  Isso,  deixem  para  lá,  todos  vocês! Vão  embora  e me  deixem
pular em paz!
– Peraí, você está querendo se matar?
– Isso, e nós estamos… apreciando a vista.
– Realmente,  a  vista  é  lind…  espera! Um  segundo.  –  o  policial pegou  seu  rádio  e 

 começou  a  trocar  palavra  com  alguém  do  outro
lado,  assunto  recheado  de  códigos  e  jargões  como  ‘desinteligência’
e ‘simulacro’. Levantou a arma novamente e apontou para o suicida.
– Não se mexa! Ou eu atiro!
–  Mas  o  que  foi  que  eu  fiz?  –  indagou  o  suicida  nervoso,
levantando os braços.
–  Matar  é  crime!  Mesmo  que  seja  você  mesmo…  Foi  o  que
me  disse  a  central.  –  o  policial  estava  inseguro, mas  certo  de  que
prenderia alguém.
– Eu não estou nem aí para você! Eu vou me matar e você não
pode me impedir!
– Lógico que posso! Eu estou armado, eu decido o que posso ou
não.
–  Peraí,  deixa  eu  ver  se  eu  entendi.  Para  me  impedir  de  me
matar, você vai atirar em mim?
– Ele é o policial,  faz o que ele diz. – opinou o zelador, cada vez
menos atento à situação e concentrado em apreciar a vista.
– Agora que você falou, fiquei meio confuso com isso tudo. Posso
pegar depoimentos de vocês depois que esta cena terminar? – disse o
síndico apontando para a câmera.
–  Alguém  aqui  está  realmente  preocupado  comigo?  Se  eu  vou
pular ou não?
Silêncio.
– Que patético, hein?
– Quem disse isso?- Eu… quer dizer, você… quer dizer, tanto faz.
– Ah.- era a materialização de seu  inconsciente. Estava sentada
no parapeito há muito tempo e achou que era hora de intervir.
– Você vai pular ou não? Já está ficando bem chato aqui.
– Me  diz  você. A  vontade  de  vir  até  aqui  e  pular  veio  de  você
sussurrando na minha cabeça sem parar.
– Ah. Achei que seria divertido. Agora que estou aqui… não sei.
Quem sabe. Você sabe?
– Para quê eu perco meu tempo te ouvindo…
Enquanto  o  suicida  conversava  com  ele  mesmo,  o  policial
consultava  a  central  para  saber  se  havia  algum  crime  nisso.  O
síndico filmava, em close, o monólogo de seu protagonista. O zelador
observava a vista.
– Vamos  resolver  isso de uma vez por  todas! Nós  somos  cinco,
vamos votar se eu pulo ou não.
– Cinco? Só vejo quatro de nós aqui.
– Longa história.
– Ah, tá.
– Aham, então. Quem quer que eu não pule, levante a mão.
Ninguém  levantou. Um misto de  tristeza e aceitação  tomou-lhe
conta. Só para não ter dúvidas, continuou a votação.
– Quem quer que eu pule, levante a mão.
Ninguém levantou novamente. Desta vez, ficou com raiva.
– Vocês sabem como funciona uma votação? Não é um conceito
muito difícil de se entender.- Ah, desculpe. É que o documentarista não pode  interferir no
tema documentado.
– Bem, eu preciso consultar a central para saber se alguma das
opções constitui crime.
– O que o senhor decidir está bom.
– E você?  – olhou para o parapeito, onde estava a  figura que só
ele via. – Qual a sua desculpa?
– Sei lá, eu prefiro me abster.
A  raiva  aumentou,  principalmente  por  causa  de  seu
inconsciente.
– Vem cá. Para quê você serve se não me ajuda em nada?
– Boa pergunta. Não sei.
– Ótimo, você não sabe de nada!
–  Mas  eu  não  estou  aqui  para  te  ajudar  a  tomar  decisões,
eu  acho.  Eu  devo  estar  aqui  para  que  você me  veja  e  tire  alguma
conclusão disso. Só não sei qual.
– A decisão aqui é óbvia! Pular ou não pular…
– Eis a questão.
–  Agora  virou  piadista?  Entendi  porque  nunca  consegui  ser
engraçado.
– Talvez seja por isso.
– Todas minhas dúvidas são respondidas com um “talvez”?
– Talvez.
Seu inconsciente olhou para cima. O síndico olhou para o tempo
de gravação. O policial olhou para sua arma. O zelador olhou para a vista.
– Então, você não vai me ajudar.
– Não.
–  Ahá!  Você  respondeu  com  um  “não”!  Então  pode  me  dar
respostas conclusivas!
– Talvez.
– Sério, ou você é muito engraçado ou muito  irritante. Por que
eu nunca consegui ser nenhum dos dois?
– Vai saber… talvez você não sabia qual dos dois queria ser.
Cansou  daquilo.  Com  a  raiva  explodindo  através  de  seus
músculos, pulou para agarrar a materialização de  seu  inconsciente.
No  susto,  o  policial  atirou  novamente  no  suicida,  acertando  um
pássaro pousado numa das  lindas  árvores que o  zelador  apreciava.
O síndico  tentava acompanhar  tudo o que acontecia em seu melhor
ângulo.
Em uma fração de segundo, preparou-se para o  impacto contra
ele mesmo, materializado  como  uma  forma  sentada  no  parapeito,
e  se  assustou  ao  perceber  que  realmente  conseguira  agarrar  um
personagem  imaginário.  Provavelmente,  aquela  luta  também  era
imaginária,  mas  estava  com  tanta  raiva  que  começou  a  imaginar
alguns socos bem fortes.
Rolaram no parapeito. Caíram. Preparou-se para o impacto.
O suicida apenas não fazia ideia que um rapaz de dezessete anos
havia acabado de se jogar de um prédio de cinco andares. Antes dele,
999.998 pessoas morreram em quedas, desde o último que se salvou milagrosamente. 

Agora  eram  999.999. O  suicida  da  nossa  história
era um em um milhão.
Dois  andares  abaixo  do  parapeito  em  que  estivera  há  tanto
tempo, o cadarço de seu tênis se enroscou em um metal proeminente
em uma das  janelas. O  fato dele  ter a mania de dar nós  triplos  em
seus  tênis  para  que  não  desamarrem  foi  omitido  por  mim  para
aumentar a tensão de toda a história.
Ficou preso e não caiu. Seu inconsciente caiu. Nunca esteve tão
certo do que fazer de sua vida dali em diante.
 

Guilherme Pimenta

Os Impublicáveis

Previous post

Peixinhos de Ouro

Next post

Doce pornografia