Barroso da Costa

DESCRIMINALIZAÇÃO DO COMÉRCIO DE ENTORPECENTES: NÃO SERIA ESTE O CAMINHO?

 Ainda que na realidade de nosso país a resposta seja negativa, devido aos problemas estruturais que assolam o Brasil, observa-se que a indagação sugerida no título deste artigo afigura-se obrigatória a todos aqueles que, de qualquer forma, estejam envolvidos com as ciências penais.

Num contexto social conturbado, em que o consumo desenfreado cada vez mais dita os comportamentos, o tráfico de entorpecentes emerge como alternativa de muitos indivíduos aos quais não foi garantido o acesso aos meios legais da ascensão exigida pelo capitalismo globalizado. Ofertando ganhos materiais imediatos, percebe-se que a empresa do narcotráfico tem angariado colaboradores cada vez mais jovens, que nela ingressam como peças descartáveis, seduzidos pelas aparentes vantagens de uma vida criminosa e marginal.

Como o tráfico de drogas funciona a partir da lógica de mercado, de se concluir que sua estrutura somente apresenta os índices absurdos de crescimento contemporaneamente observados porque a demanda é cada vez maior.   Certo é que a procura ilimitada do gozo, característica marcante da sociedade de consumo, tem ampliado sobremaneira o número de usuários de drogas. Porém, faz-se necessário frisar que a busca pelo prazer é traço inerente ao ser humano, que se move continuamente na tentativa de preencher o vazio que o acompanha, seja através da criação artística, seja por meio das sensações proporcionadas pelo consumo de substâncias entorpecentes, dentre outros meios de transcendência.

Sobre a busca pelo prazer, assim escreveu Freud[1]:

“Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo”.

E, dentre os métodos de busca apontados pelo genial autor, não poderia faltar o consumo de substâncias entorpecentes:

“O mais grosseiro, embora também o mais eficaz, desses métodos de influência é o químico: a intoxicação. Não creio que alguém compreenda inteiramente o seu mecanismo; é fato, porém, que existem substâncias estranhas, as quais, quando presentes no sangue ou nos tecidos, provocam em nós, diretamente, sensações prazerosas, alterando tanto, também, as condições que dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber impulsos desagradáveis. (…) Devemos a tais veículos não só produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse ‘amortecedor de preocupações’, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade”.

Assim é que o uso do que se denomina droga acompanha a humanidade desde seus primórdios, até mesmo em rituais religiosos, o que impõe o questionamento acerca da eficácia de leis que visam coibir este comportamento e seus efeitos colaterais.

A partir desta colocação, faz-se de suma importância a medição do que é mais prejudicial à sociedade: o consumo de entorpecentes e os efeitos deletérios que tais substâncias provocam nas pessoas que delas se utilizam ou a violência que a ilegalidade do comércio de drogas gera, sendo a causa direta e indireta da morte de tantos indivíduos, vinculados ou não ao mecanismo que move o narcotráfico.

Aliás, deve-se alertar para o fato de que a criminalização de uma atividade que jamais cessará pode representar tão-somente o esforço de uma elite no sentido de reforçar o processo de exclusão e estigmatização dos sujeitos envolvidos na prática da referida empresa. E, neste ponto, desnecessário lembrar que os agentes responsáveis pela última cadeia de distribuição de entorpecentes, aqueles que entram em confronto direto com a polícia, são os que não possuem capacidade de consumo, representando, pois, a “impureza” ou a “sujeira” da sociedade pós-moderna, que nessa capacidade erige seus pilares.

Segundo o sociólogo Zygmunt Bauman[2], além da suavização das medidas de proteção ao mercado interno e do máximo afastamento do Estado no que tange ao controle das relações econômicas, uma das exigências do capital globalizado e, logo, da sociedade de consumo é que o ente político ocupe-se prioritariamente na manutenção da “lei e da ordem”. Isso significa, em linguagem prática, que se tenha por prioridade a segregação, ao menor custo possível, daqueles indivíduos excluídos da cadeia de consumo, cuja segurança ameaçam com seu comportamento delinqüente e desviado.

Longe de ser um apontamento precipitado, nota-se que a violência provocada pela ilegalidade da empresa do tráfico de entorpecentes causa muito mais danos à sociedade que puramente o uso destas substâncias. Se o consumo de drogas é questão de saúde pública, a ilegalidade do narcotráfico cria um problema de ordem pública, cada vez menos administrável. Ou seja, uma questão de polícia, que se consubstancia no dever de combater um comércio que nunca será extinto, simplesmente porque a demanda nunca acabará.

Por tratar-se de atividade ilegal, o comércio de narcóticos cria suas regras próprias, estabelecendo, através da força, uma estrutura de poder paralelo ao do Estado. Dentre tais regras, merecem destaque a execução sumária de devedores e de maus “funcionários”, a disputa por pontos de comercialização, além das práticas de roubos e seqüestros, que, numa análise mercadológica, podem ser empreendidos como atividades secundárias necessárias à obtenção de fundos para o incremento da principal, com a aquisição de armas, por exemplo.

Na esteira desse mecanismo e como engrenagem a ele imprescindível, tem-se terreno fértil a favorecer também a corrupção dos agentes públicos, que inicialmente deveriam estar empenhados na desarticulação do narcotráfico. Aliás, verifica-se que o aliciamento de membros do poder público trata-se de fator de vital importância para a manutenção desta atividade, vez que acaba por protegê-la, propiciando sua perpetuação.

Por lidarem com a questão e, portanto, terem plena ciência de que inexistem meios de se acabar com o mercado das drogas, os agentes públicos diretamente responsáveis por esta missão, geralmente desprovidos das condições ideais de trabalho e livres da fiscalização necessária ao desempenho de sua função, acabam por criar mecanismos de convivência mais cômoda com esta modalidade delitiva. A consciência de que o combate ao narcotráfico consiste num exercício de “enxugar gelo” e a falta de vestígios, que é traço característico dessa prática criminosa, favorecem a corrupção, patologia que termina por empanar ainda mais todas as ações delitivas que envolvem o tráfico de entorpecentes.

Posto isto, fecha-se uma cadeia lógica de argumentos hábeis a demonstrar a dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de se combater com eficácia o narcotráfico e a criminalidade fomentada por esta atividade, pelo menos quando se tomam por ponto de partida as atuais condições sociais e a precariedade do aparato público de repressão.

Noutro giro, sob uma ótica pragmática, pode-se constatar que a legalização responsável e fiscalizada do comércio de entorpecentes pode, sim, trazer alguns benefícios. Além de possibilitar ao Estado a obtenção de ganhos através de uma alta tributação, a descriminalização reduziria consideravelmente a prática de outras modalidades delitivas acessórias à principal, como as acima citadas. O deslocamento do problema das drogas da pasta de segurança para a de saúde pública também diminuiria os índices de corrupção, os gastos estratosféricos e inócuos que envolvem a repressão direta ao narcotráfico, bem como o número de homicídios, especialmente nas grandes capitais.

Estas constatações são tão lógicas que só resta uma indagação a se fazer ao final de sua exposição: a quem a ilicitude do comércio de entorpecentes tanto beneficia?

Creio não ser ao “cidadão comum”, que é vítima direta dos efeitos da violência acima descrita e que se encontra à mercê de um Estado eminentemente gendarme, cada vez mais despojado de sua soberania e afastado de seus propósitos constitucionais. 

 

            


[1] FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997. ps. 24, 26 e 27.

[2] BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ps. 24/25.

Barroso da Costa

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