Barroso da Costa

OMISSÕES CRIMINOSAS

*A redução da maioridade penal em seu reverso

“À medida que as gerações passam, vão-se tornando piores. Tempo virá em que se mostrarão tão perversas que passarão a adorar o poder; o poder será para elas o direito, e a reverência ao bem deixará de existir. Finalmente, quando nenhum homem se mostrar mais irado perante as más ações ou não se sentir mais envergonhado na presença do miserável, Zeus também as destruirá. E, não obstante, mesmo assim alguma coisa deveria ser feita, ainda que fosse a sublevação dos humildes para derrubar os governantes que os oprimem”.

               Mito grego sobre a Idade do Ferro

 Mais uma vez, desfraldam-se as bandeiras do movimento pela redução da maioridade penal. Frente à barbárie que devasta o país e tem por marca a crueldade de determinados crimes, a mídia oportunista reaparece com força total. Açula a população e assanha aqueles políticos que têm por palanque eleitoral falaciosos discursos sobre o que acreditam ser segurança pública.

Ninguém duvida ou questiona o sofrimento das mães que perdem filhos para a criminalidade, seja na condição de autores dos delitos, seja enquanto vítimas. Porém, o que não se pode admitir é que esta dor e todo o clima de vingança que dela naturalmente deriva possam, novamente, motivar a atividade legiferante no âmbito penal.

O Estado não pode mover-se por paixões, já que atua por uma coletividade salvaguardada por princípios como o da legalidade e isonomia, dentre outros. Aliás, foi em nome da segurança coletiva que, há séculos, o Estado substituiu os indivíduos e avocou a si o monopólio da coerção, pondo fim ao clima hobbesiano que até então não encontrava maiores limites.

Como ordem abstrata, em prol da comunidade, passou progressivamente a punir os condenados pela prática de crimes, diluindo, assim, o sentimento de vingança pessoal que é próprio das vítimas, enquanto seres humanos.

Porém, nos últimos vinte anos, tem-se observado fenômeno interessante no cenário político brasileiro. Aproveitando-se de circunstâncias de ocasião, da comoção causada por determinados crimes, a mídia sensacionalista e diversos políticos descobriram o filão daquilo que se poderia até mesmo chamar de Direito Penal do ódio. Explico.

Com base em fatos delitivos que tiveram uma superexposição na mídia e diante do crescente medo da população – perplexa devido à crueldade da ação de criminosos –, heróis de plantão sobem aos púlpitos para pregar o máximo de punição. Desta forma, cativam a preferência de grande parte dos indivíduos que, de sua televisão, praticamente vivenciam as tragédias, passando a dividir com seus personagens o mesmo desejo de vingança.

Confere-se à lei um poder mágico, capaz de exorcizar nossos piores medos e fantasmas a partir de uma simples “canetada”. Em meio à catarse coletiva, esquece-se a regra básica de que, para ser materialmente eficaz, deve a lei emergir da realidade social, de uma demanda coletiva que a faz legítima, por coerente aos anseios da nação.

Todavia, cumpre assinalar que, neste movimento ilusionista, somente um dos lados da questão é explorado pela mídia e por políticos, dentre outros interessados: justamente o que escusa Estado e sociedade – eximindo-os de suas responsabilidades na construção de uma democracia efetiva – e perpetua o status quo vigente – incriminando indivíduos que já nascem marginalizados.

Aos mais afoitos, vale lembrar que a maioridade penal é definida no art. 228 da Constituição Federal, razão pela qual sua alteração não pode dar-se através de lei ordinária.

Posto isto, cabe perguntar por que a mídia não se mostra tão voraz em noticiar o assassinato de centenas de outros jovens que morrem diariamente – em circunstâncias tão cruéis quanto as que envolveram o homicídio da criança arrastada por um carro tomado de assalto no Rio de Janeiro, em 07 de fevereiro de 2007 –, cujas mães sofrem tanto quanto a que o Brasil amargamente viu chorar pela TV.

É necessário também questionar por qual motivo a violência contra crianças ou adolescentes brancos e economicamente privilegiados causa mais fervor e impacto que a perpetrada contra jovens negros e pobres, que, diga-se, acontece com muito mais freqüência e intensidade, mas não recebe o devido enfoque, nem mesmo por parte das autoridades competentes.

Indaga-se, ainda, acerca dos motivos por que as penas dos delitos geralmente praticados por agentes oriundos das classes menos favorecidas são mais severas que a dos crimes ditos de colarinho-branco. Ou, pelo menos, por quais razões aqueles indivíduos representam a esmagadora maioria da população carcerária. Neste ponto, deve-se destacar que a sonegação fiscal é prática comum no Brasil, a qual prejudica um número bem maior de pessoas que um roubo, entretanto garante a seu agente uma reprimenda bem mais branda, assim como um sem-número de medidas despenalizadoras.

Para aqueles que atuam na esfera penal, não é novidade a precariedade da situação carcerária. Cadeias e penitenciárias não têm vagas disponíveis, sendo o momento propício de se chamar a atenção para os milhares de mandados de prisão a cumprir nos Estados.

Deste contexto, somente se pode inferir que, se o sistema prisional já não comportaria os maiores que contra si possuem ordens de prisão, certamente não terá espaço físico hábil a receber os menores que da noite para o dia tornar-se-ão imputáveis, em caso de redução da maioridade penal. E, frise-se, não serão poucos.

Ante tantos empecilhos e contra-indicações à redução da maioridade penal, conclui-se que a sua efetivação somente tem por fundamento desviar as atenções da população para longe das verdadeiras causas da delinqüência, que, certamente, não serão solucionadas com a simples modificação de uma regra penal, já que passam muito mais pela trágica situação social do país. Compreendamos este contexto.

Assim como tantas outras nações – em sua maioria localizadas no hemisfério sul –, o Brasil, com o advento da globalização, vem sofrendo uma crise de soberania. De forma progressiva, há muito vem o país abrindo suas fronteiras e, em alguns pontos, afrouxando seu ordenamento em benefício do capital externo. Reeditam-se as políticas liberais, despindo o princípio da igualdade de seu aspecto material. Ou seja, deixa o Estado de fomentar a isonomia entre seus cidadãos, com o que concorre para eternizar as disparidades sociais.

Ao afastar-se do gerenciamento e implementação de políticas públicas de caráter social, atendo-se tão-somente a suas funções policialescas, o Estado passa a não se ocupar em garantir ativamente aos indivíduos o amplo acesso aos meios legítimos de desenvolvimento de suas potencialidades. E, sem tal intervenção, passa a valer a lei do economicamente mais forte, que, numa sociedade de consumo, leva ao caos a que hoje assistimos.

Se, na sociedade de produção, o homem conferia valor ao bem de cuja fabricação participava, na sociedade de consumo o bem passa a determinar o valor do homem, já que somente a partir da possibilidade de consumi-lo o indivíduo adquire uma identidade social. Noutras palavras, enquanto na sociedade de produção o marginalizado era aquele que não produzia, na de consumo exclui-se o sujeito que não pode ter, tornando-se o consumir um valor em si mesmo, independente dos meios que o viabilizam.

Nestas circunstâncias, tendo-se em conta o abismo que separa a elite tupiniquim de uma grande massa de miseráveis e partindo-se do princípio de que a posse de bens de consumo é conditio sine qua non para uma identificação (reconhecimento) social, fica fácil concluir que se vive num contexto que por si só convida à criminalidade. Ganham destaque aqui, os crimes que visam ao lucro rápido e fácil, como o furto, roubo e tráfico de entorpecentes, os quais, coincidência ou não, tiveram crescimento exorbitante nas últimas duas décadas.

E, vivendo num Estado “penalmente máximo e socialmente mínimo”[1], numa sociedade que só reconhece o indivíduo que consome, não se pode negar que, para aquele sujeito que nasce sem as mínimas condições de desenvolver suas potencialidades a partir dos meios legítimos, o caminho do crime acabará sendo mais atrativo. Garantir-lhe-á o gozo de quem consome e, além disso, o reconhecimento da sociedade que o identifica pelo medo, pela violência.

Parece ser o momento de nossos representantes tomarem uma importante decisão pela sociedade brasileira, assumindo uma postura que poderá indicar dois rumos. Ou determinam a permanência do país num estado “adolescente”, adotando soluções mágicas e reducionistas para questões de fundamental importância, como a acima trabalhada, ou promovem o Estado a uma condição “adulta”, capaz de responder pelos compromissos firmados na Constituição de 1988.

Caso se opte pela imputabilidade penal dos menores de 18 anos, resta saber a cargo de quem ficará a punição do Estado brasileiro, que mais uma vez afirmará sua imaturidade política, assim como a incapacidade de assumir e responsabilizar-se por suas omissões criminosas, que há muito reverberam nas ruas.

Barroso da Costa

Os Impublicáveis

 

 


[1] Expressão utilizada por José Antônio Paganella Boschi, em palestra proferida no antigo Tribunal de Alçada Mineiro.

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