Entrevistas

Entrevista com Goyatá

Francisco José dos Reis Goyatá é graduado em Medicina e mestre em Psicologia pela UFMG, Analista praticante e membro da diretoria da Associação Mineira de Psiquiatria. Atua ainda como Consultor técnico em Saúde Mental da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e Brumadinho. Além de todas essas complexas funções Goyatá acumula a, de certa forma, singela função de professor de Espanhol para infantes na escola Balão Vermelho. Parece ter aversão a respostas diretas e óbvias e costuma receitar “música, teatro, espetáculos de dança e outras atividades artísticas…” Carrega citações e pensamentos filosófico-poéticos na ponta da língua. Um intelectual de peso e contumaz defensor da causa anti-manicomial, principal objeto desta conversa.

OS IMPUBLICÁVEIS: Pelo telefone você me esclareceu que não é exatamente engajado no Movimento de Luta anti-manicomial, mas que o conhece e apóia…

Goyatá: Isso mesmo. Embora não participe diretamente eu sou “amigo” desse movimento social, porque a Luta Anti-manicomial é um movimento social; ele não é só de gente ligada ao sistema psi, ele nasceu como movimento social. Eu não saberia te dizer com precisão mas ele é formado por professores e usuários dos sistema de saúde – do SUS e alguns dos sistemas privados.

OS IMPUBLICÁVEIS: Vamos tentar definir melhor o nosso assunto: manicômio, costuma-se dizer, é para os loucos. E a loucura? Ela é socialmente definida ou existe em absoluto?

Goyatá: Bem, não sei. Em absoluto a gente sabe que não tem nada e a loucura denuncia um pouco isso…  Pra nós, hoje, mais do que nunca. Por exemplo, para Michel Foucault, a loucura é uma construção social, principalmente do século XIX, depois da Revolução Francesa quando havia a necessidade de uma certa limpeza na cidade; de se retirar as pessoas que estavam fora do que se chamou Razão. O termo manicômio aparece num autor muito importante chamado Goffman, que é autor do livro Presídios, Manicômios e Conventos. Ele, nos EUA, e Foucault, na França, vão dizer que existiu tanto do ponto de vista da parede concreta quanto do pensamento social uma tentativa de excluir as coisas que não eram razoáveis, que não eram do pensamento da Razão pequeno-burguesa nascente. Até mesmo dos princípios da Revolução: Liberdade, Igualdade e Fraternidade e… A Liberdade, embora seja fundante de uma nova era, de uma certa desilusão do homem com a divindade que o traz para o centro dos acontecimentos humanos – e aí nós estamos entrando no limite da ciência, com Descartes – ao mesmo tempo traz um pouco a falência, se levarmos o pensamento cartesiano a ferro, da própria Razão. Mas é isso que a ideologia moderna desconhece. Embora os loucos tenham se livrado dos grilhões das prisões e das naves em que eram colocados e deixados à deriva, longe da cidade, a revolução Higienista, inaugurada por Pinel, coloca outro grilhão, que é o da Razão: aquilo que não é razoável deve ser tratado, do ponto de vista dele, com técnicas cerebrais e com uma boa higiene em todos os sentidos, inclusive o sexual. Não há nada, segundo Pinel, que não se vergue a uma boa educação.

OS IMPUBLICÁVEIS: Aí então nós podemos localizar uma definição de manicômio?

Goyatá: Uma definição moderna de manicômio, por que isso de excluir os loucos e largá-los presos já é bem antigo. Eles perambulavam na Idade Média, mas é igual você vê hoje nas cidades do interior. Tem o louco bonzinho, que circula, que é até folclórico, e tem o louco perigoso, que é preso, acorrentado em verdadeiros manicômios domésticos. Hoje essa idéia de manicômio tem sido desfeita…

OS IMPUBLICÁVEIS: Acho que você já falou um pouco disso: o estabelecimento de manicômios revela os ideais de determinada época em que a loucura era fortemente marginalizada…

Goyatá: Sim, e continuam sendo ideais da nossa época: esse ideal de saúde à toda prova, e beleza à toda prova, todos esses ideais contemporâneos que Freud denuncia num artigo famoso chamado O mal-estar na civilização continuam em voga, de maneira mais sutil, delicada: por exemplo, as técnicas de engenharia genética. Quer dizer, “quem sabe um dia a gente não vai poder mexer no cérebro ou no gene e transformar esses caras – os loucos – em pessoas normais, absolutamente civilizados?”.

OS IMPUBLICÁVEIS: Houve fenômenos sócio-culturais que evidenciaram a ineficácia do “tratamento” dispensado aos loucos nessas instituições?

Goyatá: Sim. No Brasil eles não são tão antigos assim. Aconteceram no contexto do golpe de 64, principalmente. Todas as grandes revoluções (golpes) autoritárias brasileiras foram seguidas por isso: encarceramentos em massa de loucos e, junto com eles, iam os inimigos políticos, os desafetos, os pobres, os negros… A população que vai para o hospício ainda é a pobre e a negra. O Jurandir Freire Costa tinha uma expressão famosa que eram os três Ps: você não podia ser pobre, preto nem psicótico….

OS IMPUBLICÁVEIS: Achei que você ia falar puto…

Goyatá: Puto também. Pode ser o quarto P (risos). Porque para Foucault, a ordem sexual no mundo moderno e agora, no contemporâneo, é toda regrada por mais que o imperativo categórico, a lógica da libertação, segundo Zizek, seja o “Goza”, onde predomina o universo do desregramento absoluto, da barbárie. Porque quando Freud questiona a civilização, não é que ele ache que ela deva ser abandonada. Então a gente tem que trabalhar sempre dentro dessa dialética de que existem realmente avanços na psiquiatria atual, mas temos que estar atentos para que não se retorne a este modelo que em nome da ciência encarcerou um monte de gente. Porque a ciência não pára de produzir novas descobertas e estas têm que estar sempre regidas pelo princípio de que a Ciência não descobre tudo. E, nesse sentido, o fenômeno social mais importante que vivemos foi na Segunda Guerra, o Nazismo, e também o Stalinismo, quando se pensou que poderíamos ter uma raça humana pura. Então, a idéia de uma humanidade pura, controlável, sem destruição alguma, sem sintomas, sem mal-estar e, até mesmo, sem desejo, sem capricho; essa realidade toda regrada, tipo big brother, ainda se manifesta, ainda temos elementos dela, hoje. E sempre teremos, por isso é preciso estar sempre atentos e, também por isso, a importância dos órgãos de divulgação, a imprensa, as comunicações, elas estão sempre fazendo esse papel de…

OS IMPUBLICÁVEIS: De denúncia…?

Goyatá: Sim, mas não só de denúncia. De acompanhamento social. Por isso que o movimento de luta anti-manicomial tem essa importância de movimento social.

OS IMPUBLICÁVEIS: Você não diria então que houve um arrefecimento desse ideal de pureza?

Goyatá: Não, não houve nada. Piorou. Eu acho que esse imperativo categórico social do “Goza”, da saúde à toda prova, ele é, às vezes, ainda mais terrível do que essa idéia meio grotesca do manicômio, por que essas já foi de certa forma superada embora, por exemplo, no Brasil e no mundo existam muitos ainda que lembram cárceres. E é contra isso que a gente trabalha… Aliás, não é só contra isso, é no sentido da superação disso porque ser contra é fácil, ser anti-manicomial é fácil, nós já estamos numa fase de ultrapassar a idéia e pra isso contamos com essas iniciativas sociais. A idéia é de que o movimento anti-manicomial não é um movimento completamente institucionalizado, mas que conta com parcerias. Nesse sentido eu sou parceiro desse movimento e participo muito de outro que é o Movimento da Reforma Psiquiátrica, que não é a reforma da Psiquiatria, mas a reforma da relação da sociedade com a Psiquiatria, a relação também dos próprios Psiquiatras. Lógico que tudo isso tem uma dialética. Por exemplo, o movimento anti-manicomial hoje é chamado pelos seus inimigos de LAMA – Luta Anti-manicomial. E a reforma Psiquiátrica tem sido muito criticada, como excessivamente fanática, purista. Mas eu acho que o purismo do que resta aí de Fascismo, de Higienismo é muito mais violento.

OS IMPUBLICÁVEIS: E que terapêutica seria mais adequada a esses indivíduos que antes eram encaminhados aos manicômios?

Goyatá: Não sei se existe uma terapêutica mais adequada. O adequado aqui é o adequado a cada um desses sujeitos. Na verdade, antes o que se encaminhava eram sujeitos a-sujeitados. A idéia é primeiro restabelecer o mais plenamente possível essa idéia de subjetividade, de singularidade radical – no sentido de raiz – que cada sujeito humano representa. E também da singularidade dos acontecimentos que eles podem produzir ou vir a se sujeitar; uma dimensão da vida humana que é desconhecida, quase intratável num primeiro momento. Então, você se debruçar nessa dimensão significa particularizar as coisas. Aí a ciência entra como ferramenta e não como fim. Porque quando a ciência se quer universal ela destitui o sujeito, a singularidade. Então um tratamento que seria hoje possível para um sujeito psicótico ou que tem um transtorno mental muito grave será aquele que for o mais eclético possível, o que der a chance de ter uma abertura. Mas não é o ecletismo total, é um que permite essa abertura pra que o sujeito fale, pra que ele também apresente, como quase sempre eles fazem, uma proposta de cura. Quer dizer, que inclua também todas as propostas de invenção de cura e de criatividade que ele mesmo tem.

OS IMPUBLICÁVEIS: Com relação às pessoas de menor poder aquisitivo, que não têm condições de tutelar e manter seus membros que, a princípio, não apresentam condições de viver em sociedade, qual seria uma alternativa viável?

Goyatá: A Reforma Psiquiátrica brasileira está sendo considerada em artigo da Lancet – uma revista científica inglesa de renome – como sendo a segunda que mais progride no mundo. É uma reforma que aconteceu não só para os mais pobres, como muita gente imagina. Aconteceu inclusive no Legislativo brasileiro, em eventos amplamente divulgados pela imprensa, em torno da deputada Tutu Quadros – filha do Jânio Quadros –, que teria sido internada involuntariamente uma vez e aí se questionou essa noção de involuntariedade. O coordenador de Saúde Mental do Ministério, Pedro Gabriel Godinho Delgado, tem um livro que se chama As razões da tutela, mas a própria idéia de que essas pessoas precisam ser tuteladas deve ser desconstruída. De fato, algumas ainda não têm e não tiveram sequer uma chance de sair dessa questão da tutela, porque não têm família, perderam os laços, perderam qualquer noção de vida social. O Estado tem se incumbido destas pessoas criando o que nós chamamos de Residências Terapêuticas. São vários dispositivos ligados cada um ao caso específico, que tenta considerar ao máximo possível essa dimensão da historiciedade de cada um e a partir daí, pactua-se com uma rede que é complexa de atendimentos no campo do Social – e o trabalho aí com a sociedade também é constante –, no sentido dessas pessoas terem um lugar. Por que há outras soluções, por exemplo, uma família que adote ou um grupo social que adote, enfim há milhares de possibilidades; elas são concretas e acontecem. Tem registro disso em inúmeras teses de mestrado e doutorado e mesmo no site do Ministério, na parte de Coordenação de Saúde Mental. Quer dizer, hoje você tem encontro de Psiquiatras e de Psicólogos, mas tem também encontro de usuários de familiar de usuários, dos vários grupos de usuários. Você tem, enfim, um movimento social importante.

Entrevista realizada por Arthur Toledo

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