Cind Canuto

Traição

Já cometi todos os tipos de traição. Traição não é o mesmo que mentir. Minha mãe diz que é, pois ela acha que a única coisa que não consegue perdoar é a mentira. Sabendo disso, eu deveria contar tudo pra ela, pra não trair a confiança que depositou em mim. Mas eu minto. Minto para os pais – que são os seres que mais ouvem mentiras – diariamente. Menti para todos os namorados que tive, com exceção de um. Minto para mim mesma também, com ainda mais intensidade, até o ponto em que passo a acreditar na mentira, que se torna verdade.

A verdade é, assim, um monte de mentiras dispostas de forma a não se contradizerem. Aí está o pressuposto para que eu creia que traição tem que ser algo mais que mentira. A traição está na verdade no sentimento de culpa que você sente depois de fazer algo do que talvez se arrependa. E eu não me arrependo nunca. Tenho culpa, só a senti conscientemente uma vez, e essa vez eu vou contar.

Passava eu pela fase de ter mais de um namorado, tinha três apenas, porém no café do palácio, ali na Afonso Pena, estava meu próximo; foi o que eu pensei na hora. Ele não era bonito, mas estava criando versos pornográficos para uma amiga minha.

Sei que a maior parte das pessoas não se interessaria por versos feitos ao outro, e muito menos pela pessoa que os diz; eu mesma me interessei apenas pelos versos e como sabia que não eram realmente destinados a minha amiga ficou mais fácil de reparar neles.

Fomos em algum momento chamadas para ir a um jogo no mineirão, no próximo domingo. Fazia tempo que eu não prestava atenção nos jogos de futebol, meu tempo estava esgotado, só conseguia fazer os trabalhos de faculdade e tentar um malabarismo pra manter o um sem saber do dois, e o dois do três, e o três do um e tal. Aceitei sem pensar que ia.

Chego ao estádio por impulso pensando “o que que eu to fazendo aqui?” e nada de amiga. O moço me liga: onde você está? Estou no portão. Ele era atleticano.

Sim, tudo, tudo menos isso. Eu estava a fim dele e ele sabia. Mas eu sou do time azul e não abro.

Resolvi fazer sabe o quê, fingir que não era, não estava de uniforme, minha blusa era vermelha. Eu torci pelo atlético com forças que eu não tinha para mostrar ao meu futuro poeta que tenho forças. Depois disso, tudo se desenrolou tão maravilhosamente no dia que eu esqueci do incidente.

No dia seguinte eu queria morrer. Como posso largar meu time? Como posso torcer para o rival? Como posso mentir para alguém que eu pretendia ficar? Senti a culpa ardendo na pele, o que me causou febre.

Fiquei sem poeta e sem desculpa para o domingo fora de casa. Isso que é traição, o resto é bobagem.

Cind Canuto

Os Impublicáveis

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