Barroso da Costa

o biscoito

Fumei o último cigarro do maço, tombei o porta-retratos e entrei no chuveiro. A água fria escorria e levava consigo um pouco dos restos de uma noite em claro. Já fazia um ano…

Entrei no terno, depois no carro e segui para a DEPOL.

Eram apenas sete da manhã. O trânsito já estava caótico. Os termômetros marcavam trinta e dois graus e um motoqueiro era atendido pelo corpo de bombeiros em meio a uma poça de sangue.

Cheguei no 13º Distrito às nove horas, cumprimentei o Pereira, entrei em minha sala, acendi um Hollywood e, quando vi o cinzeiro cheio de guimbas, senti uma pontada no estômago.

Aliás, meu estômago era uma espécie de oráculo, sendo aquela dor nada mais que um prenúncio de que o dia seria longo.

O pensamento mal acabou e o Pereira adentrou o gabinete, anunciando a prisão de um travesti.

– Matou aquele escovadinho, lembra doutor? A imprensa já está aí fora, esperando o resultado do depoimento. A boneca está na sala da escrivã, pronta para a qualificação.

– Tô indo, Pereira.

Ficava encabulado com a habilidade do Pereira em falar e, ao mesmo tempo, passear com um palito de um canto ao outro da boca. Como será que ele conseguia…

Pus meu paletó, entrei na sala ao lado, o suor me escorria pela testa. Comecei as perguntas de praxe:

– Nome.

– Geraldo Carvalho da Silva.

– Alcunha.

– Quem é o Cunha, doutor Delegado?

– Eu quero dizer apelido, seu nome de guerra…

– Aaahh, sim! Bianca.

– Filiação.

– José Faria da Silva e Umbelina Carvalho da Silva.

– Profissão.

– Ai, doutor! Prostituta, né?!

Outra pontada no estômago…

Ele provavelmente já estaria indo à escola.

Após meia hora de depoimento, Bianca foi liberada, sob as eternas manifestações dos repórteres que aguardavam do lado de fora da DEPOL.

– Essa é a nossa Justiça, meus caros ouvintes. Matou um homem de bem e já foi liberado. Amanhã estará de volta às ruas, destruindo vidas e lares…

– É isso aí, Rezende! A polícia acaba de liberar o marginal Bianca, sob o argumento de que não houve flagrante. O delegado Maciel ainda informou que contra o travesti não foi expedido o mandado de prisão preventiva. Onde o nosso Brasil vai parar.

Voltei para minha sala. Acendi outro cigarro. Mal dei o primeiro trago e o Pereira novamente invadiu o recinto, puxou a cadeira e sentou-se, sem cerimônias.

– Porra, doutor! Até que o traveco não era tão ruim, não!

Olhei para ele, o palito não parava. Impressionante…

– Escuta aqui, Pereira. Como é que você faz para…

Outra invasão. Desta vez era o Garcia, anunciando que tinham prendido o cara que furtava calcinhas no bairro das mansões. Estava orgulhoso de ter sido entrevistado pessoalmente pelo Rezende…

– Aquele apresentador famoso, sabe, doutor?

Outra pontada no estômago, mais forte.

Ouvi o acusado, que desta vez ficou preso, junto com os outros cento e vinte da cela doze, que dividiam o ambiente com bacilos de Koch, sarna, ratos etc.

Pus meu paletó, acendi um cigarro e saí para almoçar, perto da delegacia mesmo. No meio do caminho, caiu a chuva já anunciada pela previsão do tempo.

Entrei no boteco, a chuva parou. O calor parece ter voltado com o dobro de intensidade.

Pedi um PF.

O gosto não estava bom. Mastiguei o ovo frito e vi uma barata cair do telhado, quase no prato de meu vizinho de mesa.

Na televisão, o Rezende dava as espetaculares notícias do dia, com seu habitual tom tenebroso.

– A cidade está cada vez mais violenta. Os cidadãos de bem já não podem circular em paz. E é por isso que eu recomendo ao senhor e à senhora o tônico “Power Maxi Turbo”….

Paguei a conta e retornei à DEPOL.

Entrei em minha sala, acendi um cigarro, abri a gaveta, olhei para a foto e para minha .40…

– Doutor?!

Era o Pereira…

– Um viciado matou o filho lá no “Sovaco da Cobra”. Tão querendo linchar o elemento. A viatura já está pronta.

Pus meu paletó e fui acompanhar as diligências.

O calor oprimia, sufocava.

Chegando ao local, o de sempre. Uma multidão se aglomerava na porta do barraco, dificultando a passagem. A perícia ainda não havia chegado. Antes de passar pelo portão de ferro, ainda pude escutar uma voz feminina:

– É isso mesmo Rezende, onde nós vamos parar…

Senti uma pontada que me fez dobrar.

No interior do barraco, cercado por policiais e já algemado, um sujeito chorava e dizia que não se lembrava do que aconteceu, que só podia estar possuído pelo demônio…

Além de um cachimbo feito com uma lata de cerveja, panelas vazias. Um cachorro raquítico dormia no canto do segundo e último cômodo daquela habitação.

– Doutor, o corpo está no fundo do quintal.

Foi pisar do lado de fora do que seria a cozinha e a chuva voltou a cair.

Acendi um cigarro. O calor aumentava com a chuva.

Andei até o final do lote e vi estendido na lama, que se misturava ao sangue, o corpo de uma criança.

A blusa era curta e deixava à mostra uma barriga inchada.

A têmpora direita estava amassada e, à evidência, o trauma havia sido causado por uma pá, provavelmente aquela encostada na bananeira.

A chupeta ainda estava presa ao cordão e, na mão direita, o menino ainda segurava um biscoito.

Caí de joelhos e vomitei.

O meu filho teria a mesma idade.

Barroso da Costa

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