Textos de colaboradores

mea culpa

José é um homem sem igual. Pai de família faz o possível e o impossível para dar aos filhos a boa educação que não recebeu e uma vida confortável à sua esposa, proporcionando a esta os pequenos prazeres da vida moderna, o poder de compra, nobre vocação feminina (embora algumas poucas não sofram desta doença e cada dia mais homens caminhem na sessão de cosméticos), nossa cara Nana, esposa de José, tem no ato de comprar seu único prazer. Ao se entregar a essa não reconhecida categoria olímpica, ela pode desligar-se de suas frustrações e viver um conto de fadas envolto de vitrines brilhantes num ambiente seguro chamado Shopping Center. José, mais uma prova viva do efeito do marketing sobre a massa, aos poucos, sem muito alarde, é atraído ao frenesi consumista pelos canais de compra ou por anúncios na Internet: relógios com o escudo do seu time do coração, churrasqueiras elétricas portáteis, furadeiras compactas mais e mais poderosas, celulares que podem ser trocados por um novo quase que mensalmente… José é humano como qualquer um.

    Outra parte importante na vida de José é a TV. ela é um pouco mais para ele do que representa para outros milhões. A TV é mais que um hobby: é um amigo, um momento crucial de lazer depois de seu trabalho estressante e dignificante. Passar um dia trancado em uma sala de escritório ou em uma fábrica extrai nossa força dia após dia, então nosso amigo precisa de uma massagem mental, algo que não lhe custe sua total atenção e muito menos esforço, requisitos básicos para o sexo. É preciso apenas assistir, apenas deixar com que aquelas imagens invadam sua mente sem qualquer arrependimento. Um filme de ação faz maravilhas a um homem, um debate político edifica, um documentário no safári africano tão emocionante, enfim, o mundo fala com José através da tela da TV. Ele sente que essa o acompanhou por toda sua vida, esteve com ele nos momentos difíceis, trouxe coragem quando ele pensava no mundo como uma forma de dor, fez com que José sonhasse, deu-lhe esperança, o convenceu da nobreza humana.

A vida deve ser uma busca diária por paz e tranqüilidade. José vive num mundo que supõe ser sadio e necessário.

    Um dia José voltando do trabalho, num raro momento de lucidez, percebeu pelo caminho um parque arborizado, uma verdadeira ilha de sonhos no meio daquele gigante de concreto. “Como nunca percebi esse lugar antes?” Foi parando seu carro para avaliar os riscos de um contato inesperado com o mundo que o cerca. Caminhando alguns passos parque adentro José visualizou algo surpreendente: um homem grisalho, barbas brancas um roupão esfarrapado com franjas de algodão, sentado num canto do parque sobre uma pedra. Aquela visão invadiu a mente de José: “Será um profeta? Mas por aqui?” José, olhando calmamente para aquele senhor ali sentado, passou alguns instantes a considerar as escolhas de toda uma vida, tentando dar respostas a tantas perguntas que antes deste momento ele não ousava fazer. José então imaginou o que lhe aconteceria se enveredasse numa conversa com aquela estranha figura.

“Oi meu filho, o que queres aqui?”.

“Não sei ao certo, pensei que o senhor saberia me dizer”.

“Se soubesse estaria eu sentado nesta pedra?”.

“Mas não é isso que fazem os profetas? Digo, ficam a pensar num meio de obter todas as respostas?”.

“Se assim eu fizesse, há tempo já teria desistido. Estou aqui apenas a jogar meu peso sobre essa rocha, apenas aliviando o fardo de minhas pernas. As respostas que preciso obtive sim, através do tempo, mas não compactuando com o ócio. Garanto-lhe, meu jovem”.

“Gostaria de fazer-lhe uma pergunta, folclórico senhor, e depois não o incomodarei mais”.

“Diga!”.

“Em sua sábia vida, qual o maior mistério que teve de enfrentar? A maior força que enfrentou?”.

“Caro amigo, a ignorância é sem duvida a maior das forças contrárias a um profeta. Através dela o ser humano vive, pratica, respira e morre num berço de egocêntrica felicidade”.

    Tal diálogo ilusório fez com que José recuasse. Na realidade, ele havia viajado para tão longe que mal percebera que uma jovem moça acompanhava aquele senhor, andando calmamente a seu lado. O antes profeta deixou suas formas fabulosas criadas pela desesperada mente de José e agora não passava de um homem velho e com um vasto bigode, pernas fracas e uma roupa leve de verão que de nada lembrava aquela vistosa manta que José viu em seus devaneios: “Mas como? Que terrível surto este que abalou meus sentidos?”.

José foi para casa aquele dia visivelmente apavorado. Entendia agora que algo dentro dele lutava contra a errada percepção da vida sem igual, percepção esta que o levou até o mesmo abismo em que milhões de Josés se encontram mundo afora, nesse exato momento.

Bruno S. Telles

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