Barroso da Costa

guarde nos olhos

O Ivan Lins tem uma música que, à primeira vista, não apresenta nada de especial, mas que me toca de uma forma diferente. Não sei exatamente se pelo casamento do início da letra com a evolução melódica, mas sei que esta união harmônica me traz uma esperança de chuva, de algo que prepara a terra para novamente florescer, como num choro em que se misturam restos de saudade conformada com a convicção de que, se tivesse outra oportunidade, viveria tudo que me faz chorar de novo.

Numa abordagem mais racional, a letra remete-me a uma daquelas “viagens” que temos quando crianças. Ainda moleque – e até já crescido –, ficava pensando na possibilidade de nossas retinas gravarem, como uma câmera, tudo aquilo que víssemos durante a vida; e, em caso positivo, o quanto seria interessante se algum dia inventassem uma máquina que pudesse ler tais registros. Melhor ainda se o engenho pudesse decifrar os sentimentos agregados a cada imagem. Aí seria sensacional!

Será que as pessoas de olhos pretos, verdes ou azuis vêem o mundo diferente de mim, que tenho olhos castanhos? Esta era uma das outras questões que tinha quando era moleque e que seria respondida caso inventassem a tal “máquina decifradora de retinas”.

De qualquer forma, não tenho dúvidas de que semelhante invento revolucionaria o mundo. Se para melhor ou para pior, não sei – o avião não foi criado com motivações militares. Enfim, se pessoas não são nem boas nem más, apenas pessoas, talvez não houvesse mudanças nem para melhor, nem para pior, a máquina tão-somente revolucionaria, alteraria padrões, assim como as imagens registradas teriam marcado aqueles que as gravaram, os quais delas fizeram bom ou mau uso.

Mesmo que não possa valorar o invento, penso que ele talvez viabilizasse mudanças em nossas perspectivas, já que poderíamos ver a angústia de uma criança frente aos adultos gigantes, a quem temem, mas de quem dependem e a quem, geralmente, abandonadamente amam. Ou a tristeza do velho frente ao adulto que era ontem e que hoje o trata como um bebê, com apertos na bochecha e linguagem tatibitate.

Conheceríamos a visão da fome, da violência – ativa e passiva. Assistiríamos à frustração da mulher que não recebe de seu companheiro o beijo e o abraço tão esperados, ou à solidão do homem que nunca se acha suficiente para as expectativas da mulher e dos filhos.

Seriam desveladas todas as cenas tristes da vida de nossos pais, todos os seus amores, e então saberíamos que, mais que nossos pais, eles eram seres humanos, com toda uma história que ia além de nosso egoísmo de filhos. Que eles próprios foram filhos e também se decepcionaram com seus pais; que a história muitas vezes se repete devido à nossa ignorância, à nossa rigidez, ao simples fato de não sairmos de nós mesmos e tentarmos ver o mundo com os olhos, circunstâncias e dores alheias.

Se a geringonça retirada dum sonho de menino existisse, poderíamos aprender com os olhos dos outros. E, vendo em todos a fragilidade que nos assusta, mas nos iguala, talvez pudéssemos guardar nos nossos uma água mais pura, um horizonte mais amplo de tolerância.

A música não tem nada demais, mas me toca tanto que quase posso vê-la, tão bem guardada que está em meus olhos

Barroso da Costa

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