Barroso da Costa

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– Boa noite, doutor!

O Dr. Pedro Salles mal pôde ouvir o cumprimento de Quirino, porteiro do Pronto Socorro, naquela quarta-feira, sete horas da noite, devido ao tumulto causado pela chegada de seis feridos a bala, trazidos pela própria polícia. Foi difícil atravessar aquela turba, que incluía repórteres e familiares. Flashes se misturavam aos gritos de queremos justiça e à sirene de ambulâncias que nunca paravam de chegar. O circo estava montado.

O trânsito estava caótico, um pequeno acidente no elevado impedia o fluxo e já eram oito e meia. A senhora que dirigia o carro da frente era assaltada por um moleque raquítico, armado com uma garrafa quebrada. Mais uma hora e, com um pouco de otimismo, estaria em casa.

Por um breve momento, o cheiro de gás carbônico e aquela aglomeração ruidosa de carros e pessoas, tão características e caras às grandes cidades, remeteram-no à imagem de uma metástase, com a proliferação e concentração parasitária de seres humanos em pontos específicos do globo representando o avançado movimento de um câncer, que rapidamente vai minando o corpo planetário habitado.

 Divertiu-se com a imagem criada, rapidamente desfeita quando quase atropelou um motoqueiro, que, logo à sua frente, reequilibrando-se no veículo e sem se virar, lhe estendeu o dedo médio da mão esquerda.

 Às onze e meia, entrou em casa. Podia ouvir os uivos de um pastor alucinado, anunciando um exorcismo. Do cume de um ceticismo que chegava a amargar a boca, refletiu rapidamente sobre a propagação desses templos, que agora invadiam a zona sul, arrastando consigo emergentes, jogadores de futebol, médicos e até o vizinho, ex-professor de Filosofia da Universidade Estadual.

Quarta-feira normal, pensou, enquanto o tédio acabava de instalar-se. Há muito, um oco desértico o habitava, sem saídas.

Pegou o porta-retratos dentro da gaveta. Olhou o rosto alegre de Laura, rosto jovem que revelava os bons tempos vividos juntos, em que ainda havia desejo, expectativas, sonhos, esperanças. Rosto que, de forma desesperada, tentava reter, como se fosse o último laço capaz de uni-lo a uma vida minimamente humana. Mas a imagem se liquefazia em sua memória e a lembrança escorria pelos vãos de sua desconexa realidade, fugidia à sua sôfrega busca de sentido. Já eram passados cinco anos do divórcio.

Não a culpava. Não se considerava uma pessoa de fácil convivência. Além do mais, é difícil imaginar a vida em comum de dois médicos, o tempo fica escasso, os filhos ficam para depois da ascensão profissional, assim como as férias, os jantares a dois, as viagens, o sexo, o amor…

Abria sua segunda garrafa de uísque naquela semana. Estava bebendo demais, pensou ao acabar de se servir um caubói duplo.

Há muito não saía de casa. Realmente não fazia idéia de que as coisas sem Laura – seria este mesmo o seu nome? – fossem ficar tão difíceis, insignificantes, insignificadas, insignificáveis. Sentia-se digerido por uma rotina cada vez mais monótona, desde que ela o trocou pelo hippie de boutique metido a guru, que, com muita maconha e astrologia, conseguiu levá-la para o planalto central, onde devem comer arroz integral e esperar pela visita de discos voadores.

Uma e meia da manhã.

 Tirou a camisa e foi ao banheiro. Abriu o armário e tirou o canudo de prata com o papelote dentro do estojo. Cheirou.

Voltou ao quarto e ligou a TV. Acendeu um cigarro. Observou que em seis dos oito canais àquela hora no ar, pastores distribuíam bênçãos e curas em troca de dízimos. Atores decadentes davam depoimentos de incentivo ao ingresso dos telespectadores naquelas seitas, dizendo-se, graças a Jesus, aleluia, livres do inferno das drogas e da luxúria.

 Tomou um banho e o último gole da garrafa, enquanto assistia a seu mijo amarelo e fedorento escorrer pelo ralo.

Retocou o nariz e se vestiu para voltar ao hospital.

Quinta-feira é dia de plantão.

Barroso da Costa

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